Acórdão nº 141/10 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução14 de Abril de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 141/2010

Processo n.º 23/10

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

1. Nos presentes autos, em que é recorrente Ministério Público e recorrida A., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:

I – RELATÓRIO

1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido pela 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 21 de Outubro de 2009 (fls. 675 a 691) que recusou a aplicação da norma constante do artigo 169º, n.º 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do Direito Penal, ínsito no n.º 2 do artigo 18º da CRP.

Cumpre apreciar.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso já foi apreciada por este Tribunal diversas vezes, sendo sua jurisprudência constante (assim, ver Acórdãos n.º 144/04, n.º 196/04, n.º 303/04, n.º 170/06, n.º 396/07, n.º 522/07 e n.º 591/07, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que a incriminação do lenocínio não configura uma violação do princípio da subsidiariedade do Direito Penal ou sequer de qualquer um dos direitos fundamentais elencados pelo ora recorrente (livre desenvolvimento da personalidade sexual – artigo 26º da CRP –, liberdade de expressão através da sexualidade – artigo 37º da CRP –, liberdade de consciência – artigo 41º da CRP – ou ainda a liberdade de escolha de profissão – artigo 47º da CRP).

Logo na primeira oportunidade em que foi chamado a tomar posição sobre esta matéria, através do Acórdão n.º 144/04, este Tribunal entendeu o seguinte:

“(…) questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.

Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).

(…)

Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não...

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