Acórdão nº 269/10 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Junho de 2010

Magistrado ResponsávelCons. V
Data da Resolução29 de Junho de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 269/10

Processo n.º 985/09

  1. Secção

    Relator: Conselheiro Vítor Gomes

    Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

    I – Relatório

    1. A., S.A., impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho que lhe aplicou uma coima única de €6.720, em processo de contra-ordenação, por violação do artigo 273.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Trabalho de 2003 e do artigo 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro.

      Por sentença de 22 de Julho de 2009, o Tribunal Judicial de Setúbal negou provimento à impugnação.

      Para chegar a tal resultado, a sentença ponderou o seguinte:

      “(…)

      Do art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o Novo CTrabalho, da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Marco, e das questões de constitucionalidade:

      Está imputada a violação do art. 273.º nºs. 1 e 2, als. a), b), d), f) e m) do CTrabalho de 2003, o que constitui contra-ordenação muito grave, nos termo do art. 671.º n.º 1 do mesmo diploma.

      O art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, sob a epígrafe “norma revogatória”, prevê, no n.º 1 al. a), a revogação do CTrabalho de 2003, excepcionando, no n.º 3 al. a), entre outros, o citado art. 273.º. Mas certo é que esta alínea nada dizia à norma punitiva do art.º 671.º do CTrabalho de 2003, que assim se deu por revogada.

      Na Declaração de Rectificação 2 1/2009, de 18 de Março, declara-se que a citada Lei 7/2009 saiu com diversas inexactidões, que se declarou rectificar, entre elas a al. a) do nº 3 do art. 12.º, de tal modo que, onde se lê “a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho…” deve ler-se “a) Artigos 272º a 280º e 671º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho…”.

      Vem sendo afirmado que tal Declaração de Rectificação é nula, pelas seguintes razões: -

      - dispõe o art. 5.º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a identificação e formulário de diplomas), na versão republicada no anexo à Lei 42/2007, de 24 de Agosto, que «As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1ª série do Diário da República e são feitas mediante declaração do mesmo órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série»;

      - a indicação do art. 212.º a 280.º e a omissão do art. 671.º do CTrabalho não decorre de lapso gramatical, ortográfico, de cálculo ou de natureza análoga;

      - nem decorre de erro material proveniente de divergências entre o texto original e o texto publicado na 1ª série do Diário da República. Com efeito, do confronto do texto original com o publicado no dia 12 de Fevereiro de 2009, não resulta qualquer divergência, no que concerne à citada al. m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei 7/2009;

      - para chegar a tal conclusão, basta consultar o Decreto da Assembleia da República n.º 262/X, publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 61/X/4, de 26 de Janeiro de 2009;

      - texto final que decorre, aliás, de um processo de alteração, após veto e reapreciação, da versão publicada por Decreto da Assembleia da República n.º 255/X, publicada no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 34/X/4, de 28 de Novembro de 2008;

      - não pode haver qualquer dúvida sobre o que se considera texto original (o do citado Decreto da Assembleia da República n.º 262/X);

      - nos termos do art. 156.º n.º 1 do Regimento da Assembleia da República, «A redacção final dos projectos e propostas de lei incumbe à comissão parlamentar competente», sendo certo que «concluída a elaboração do texto este é publicado no Diário [da Assembleia da República]»;

      - até três dias úteis após a publicação no Diário da Assembleia da República, os deputados podem reclamar das inexactidões, tendo o Presidente de decidir em vinte e quatro horas, existindo ainda a possibilidade de recurso para o Plenário ou para a Comissão Permanente (art. 157.º do Regimento), determinando o art. 158.° do Regimento que «considera-se definitivo o texto sobre o qual tenham recaído reclamações ou aquele a que se chegou depois de decididas as reclamações apresentadas»;

      - é esta versão final dos Decretos da Assembleia da República que é enviada ao Presidente da República para promulgação (art. 159.º do Regimento);

      - sendo certo que nem o Presidente da República, em sede de promulgação, nem o Governo, em sede de referenda, têm poderes para alterar o texto;

      - o que significa que a única possibilidade de o texto original ser distinto do que surge no Diário da Assembleia da República de 26 de Janeiro de 2009 (II série A) é ter ocorrido alguma reclamação que levasse a alterar o texto remetido para o Presidente da República. Mas, o que resulta da cronologia do diploma que se encontra no “site” da Assembleia da República é que tal não sucedeu;

      - logo, a Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, não cumpre o disposto no art. 5º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro, sendo, por isso, ilegal;

      - a tanto acresce que esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: a coberto de uma rectificação está, efectivamente, a alterar-se a lei, violando, assim, o disposto no art. 161.º al. c) da Constituição; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29.º n.º 4, da Constituição da República;

      - como escreve o Professor Figueiredo Dias, «esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (in Direito Penal Português, Tomo 1, 2 Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 180).

      Estamos de acordo com este raciocínio – tanto mais que é para nós evidente que a Declaração de Rectificação 21/2009 inova, passando a punir como contra-ordenação certo comportamento, que entretanto deixara de ser punido pelo art. 12.º da Lei 7/2009, tal como esta veio publicada no DR de 12.02.2009 e tal como esta foi aprovada pela Assembleia da República. Está, pois, em causa um autêntico acto legislativo, que deveria assumir a forma de lei – arts. 112.º n.º 1, 161.º al. c) e 166.º n.º 3 da Constituição – após os competentes debates e votações – art. 168.º n.ºs 1 e 2 da Constituição.

      Mas, na nossa perspectiva, a discussão não pode – nem deve – terminar por aqui.

      Se para nós é patente que a punição como contra-ordenação da conduta dos autos surge revogada no art. 12.º n.º 1 al. a) da Lei 7/2009, tal como esta foi publicada no dia 12.02.2009 e foi efectivamente aprovada após discussão e votação na Assembleia da República, pensamos que outra questão se deverá colocar: será constitucional a despenalização de tal conduta-

      Note-se que o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição afirma que todos os trabalhadores têm direito à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, enquanto que o n.º 2 exige ao Estado o dever de assegurar tais condições de trabalho a que os trabalhadores têm direito. Ou seja, o art. 59.º n.º 2 exige um comportamento interventor do Estado nesta matéria, estabelecendo as medidas adequadas a assegurar tais condições de trabalho e sancionando os comportamentos que, por algum modo, violem tais direitos. Assim, quando o legislador pune comportamentos violadores das condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, está a cumprir uma obrigação constitucional, dirigida aos próprios poderes públicos.

      Ora, se no âmbito do CTrabalho de 2003 existia uma estrutura sancionatória que efectivamente pretendia garantir o dever do Estado em assegurar essas condições de trabalho, no Novo CTrabalho, aprovado pela Lei 7/2009, no que respeita à higiene, segurança e saúde no trabalho, temos apenas alguns princípios gerais – arts. 281.º a 283.º – remetendo-se para regulamentação, ainda não aprovada. Assim, de uma estrutura sancionatória assegurando o efectivo cumprimento pelo Estado da obrigação imposta pelo art. 59.º n.º 2 da Constituição, passou-se para o vazio legislativo.

      Talvez de forma inadvertida, mas mesmo assim, violando aquela injunção constitucional.

      A propósito, cita-se Gomes Canotilho e Vital Moreira que, na sua Constituição Anotada, Vol. I, 4ª ed., 2007, pág. 771, sobre o referido art. 59.º, afirmam o seguinte:

      O segundo problema conexiona-se com a extensão do regime dos direitos, liberdades e garantias dos direitos económicos, sociais e culturais, quando estes tenham obtido um determinado grau de concretização (direitos fundamentais derivados). Trata-se, por um lado, de impedir que a exequibilidade dada a uma norma constitucional lhe seja depois retirada. Desta forma, todos os direitos constantes deste artigo beneficiam de garantia nos aspectos materiais já legalmente concretizados (ex.: o estabelecimento do salário mínimo), os quais não podem ser anulados ou restringidos (...) De resto, isto não é mais do que a aplicação concreta do regime de protecção dos direitos de origem legal (...) às concretizações legislativas dos direitos constitucionais.

      Mais adiante, sobre o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição, a págs. 773, organizam o seguinte comentário:

      A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde (n.º 1/c) é, simultaneamente, um direito dos trabalhadores e uma imposição constitucional dirigida aos poderes públicos (e aos empregadores), no sentido de estes fixarem os pressupostos e assegurarem o controlo das condições de higiene, segurança e saúde. Neste sentido, compete ao Estado editar regulamentos de segurança, higiene e saúde e tomar efectivas medidas de controlo da aplicação destes regulamentos. Muitos dos aspectos relacionados com a higiene e segurança estão regulamentados em convenções internacionais da OIT que...

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