Acórdão nº 5/07 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Janeiro de 2007
Magistrado Responsável | Cons. Maria João Antunes |
Data da Resolução | 09 de Janeiro de 2007 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 5/2007
Processo nº 254/06
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Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
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Relatório
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Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Comarca de Oeiras, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal de 14 de Dezembro de 2005.
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Para o que agora releva, é o seguinte o teor desta decisão:
4. Fundamentação de Direito.
4.1. A [O] arguida [arguido] vem acusada [acusado] da prática da prática da infracção de falta de título de transporte válido em transportes públicos, constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, o qual dispõe:
2 - Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa do montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte;
b) 25% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cinquenta vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, quando, não tendo ultrapassado a paragem para que tinham bilhete válido, não tenham adquirido um bilhete suplementar
4.2. A infracção prevenida no referido dispositivo reveste a natureza de transgressão ou contravenção, regendo-se, ainda (ao menos do ponto de vista substantivo) pelo C. Penal de 1886. Na verdade, o art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o C. Penal vigente e revogou o anterior, expressamente manteve o regime do C. Penal de 1886 no que às contravenções concerne ( ).
Sem outras considerações que, agora, se revelariam supérfluas, sobre, nomeadamente, a natureza penal das transgressões e a própria liquidez constitucional dessa realidade jurídica, actualmente, no ordenamento jurídico português, mormente face ao universo do Direito das Contra-Ordenações (constituindo as transgressões, sem dúvida, um corpo estranho no ordenamento sancionatório português hodierno), importa, somente, assentar, que essa natureza penal se mantém ( ), e mais se mantém a definição que constava do vetusto Código Penal de 1886, segundo o qual considera-se contravenção o facto voluntário punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica (art.º 3.º).
Isto posto cabe questionar se, na infracção em causa, se estabelece uma pena (contravencional) fixa e, sendo assim, se tal é constitucionalmente aceitável.
Quanto ao primeiro ponto, crê-se que a resposta deve ser afirmativa. Com efeito, o preceito punitivo prevê duas penas fixas: a primeira, consiste no preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa do montante de 25% do preço do respectivo bilhete; a segunda, prevenida na segunda parte da norma, redunda em cinquenta vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, no caso de a multa, se calculada de acordo com o primeiro critério, resultar em montante inferior a tal mínimo (é a hipótese que sucede na esmagadora maioria, se não na totalidade, das situações).
Isto significa, portanto, que o julgador não tem qualquer intervenção da determinação da pena concreta, em especial, adequando-a à culpa que pode ser, desde logo, dolosa ou negligente e à própria situação socio-económica do agente da infracção. Tal equivale, afigura-se, a concluir que o normativo em apreço padece, irremediavelmente, de inconstitucionalidade por violação dos princípio da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana (e, saliente-se, a adequação económico-financeira das penas pecuniárias pode considerar-se um princípio geral do Direito Penal, em sede de penas pecuniárias, com fundamento no próprio princípio constitucional da dignidade da Pessoa Humana).
4.3. Como repetidamente tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional ( ) o Direito Penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre, ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa. E é - ou deve ser - um Direito Penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos com dignidade penal (ou, para utilizar uma expressão hoje corrente, com ressonância ética), sendo que uma tal danosidade social, capaz de justificar a imposição de uma punição, há-de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.
O Direito Penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha se a protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais. A necessidade da pena - que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa - limita, pois, o âmbito de intervenção do Direito Penal, ou é mesmo o critério decisivo dessa intervenção.
O legislador ordinário, além de um princípio de humanidade na previsão das penas, que logo releva do princípio da dignidade da pessoa humana (cf. art.ºs 25.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcional idade.
4.4. É bem certo o Tribunal Constitucional, quando teve que ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sempre sublinhou que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas correspondentes ( ). E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, só pode censurar-se, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de Direito, o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva ( ).
4.5. O que se disse acima em apertada síntese resulta, entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do art.º 1.º, que baseia a República na dignidade da pessoa humana; do art.º 18.º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do art.º 25.º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do art.º 30.º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
4.6 O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do Direito Penal de um Estado de Direito, proíbe - já se disse - que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a medida da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e logo se decanta da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (art.º 1.º da Constituição) e, bem assim do direito de liberdade (art.º 27.º, n.º 1); No dizer de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático. ( )
Ora, um Direito Penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau e intensidade de culpa do agente.
A previsão, pela Lei, de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele; nem, enfim, à situação socio-económica do agente.
Ora, tal obriga a que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam.
4.7. Mas, o princípio da igualdade - que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais, e se trate diferentemente as que forem diferentes - também vincula o juiz. A essência da aplicação do princípio da igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica. ( )
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções (nos três vectores essenciais: necessidade, adequação e
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, o...
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Acórdão nº 344/07 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Junho de 2007
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