Acórdão nº 52/07 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Janeiro de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução30 de Janeiro de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 52/2007

Processo n.º 134/05

  1. Secção

Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira

Acordam o Tribunal Constitucional

No Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas foi, em 13 de Julho de 2004, proferida sentença em acção de regulação do exercício do poder paternal instaurada pelo Ministério Público, na qual – na parte que interessa agora considerar –, depois de dar por assente que a menor A., nascida em 12 de Fevereiro de 2002, tinha sido entregue pela mãe, em 28 de Maio do mesmo ano, ao casal constituído por B. e C. "para que seja adoptada plenamente pelos mesmos, integrando-se na sua família", e que estes desde então têm tratado da menor, de tal forma que a Segurança Social requerera em Março de 2004, naquele Tribunal, a confiança judicial da menor com vista à sua adopção pelo referido casal, decidiu o seguinte:

Nestes termos, o Tribunal decide regular o exercício do poder paternal relativamente à menor A.:

1) A menor A. fica confiada à guarda e cuidados do pai [D.], que exercerá o poder paternal;

2) A menor beneficiará de acompanhamento efectivo e periódico de natureza psicológica/pedopsiquiatra, com a frequência indicada pelos médicos/técnicos designados, encarregando-se a equipa de Tomar do IRS de providenciar, urgentemente pelo início e desenrolar do acompanhamento;

3) Num primeiro período de 6 meses a contar da data da decisão, a progenitora [E.] poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos Domingos, quinzenalmente, no período entre as 10H00 e as 19H00;

4) Decorridos seis meses, a mãe poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos fins-de-semana, quinzenalmente, desde as 10H00 de Sábado às 19H00 de Domingo;

5) No dia de aniversário da menor esta tomará uma refeição principal com cada um dos progenitores;

6) Relativamente ao Natal, a menor passará a noite de 24 para 25 na companhia de um progenitor e o dia 25 com o outro, o mesmo sucedendo com a noite e dia de Ano Novo, alternadamente;

7) A título de alimentos para a menor, a mãe contribuirá com a quantia de € 100 (cem euros) mensais, a entregar à mãe [pai?] por intermédio de cheque, transferência bancária, ou vale postal, até ao dia 8 de cada mês;

8) O pai da menor receberá os abonos de família e todos os demais subsídios a que a menor tenha direito;

9) Em Janeiro de cada ano, o montante referido em 7) será actualizado em função do índice de aumento de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística.

Notificados da decisão, os aludidos B. e C. dela pretenderam recorrer para a Relação de Coimbra, através de requerimento apresentado em 16 de Julho de 2004.

A pretensão foi negada ainda no Tribunal de Torres Novas por despacho do seguinte teor:

Os recorrentes B. e mulher não são titulares da relação material controvertida que versa sobre o exercício do poder paternal relativo à menor A..

Por conseguinte, não têm legitimidade para impugnarem a decisão que regulou o exercício do poder paternal.

Por tal motivo, indefiro o recurso interposto pelos mesmos - art. 680º e 687º n.º 3 do CPC.

Custas no incidente pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em duas UC’s.

Notifique.

Inconformados, os interessados reclamaram para o Presidente da Relação de Coimbra, nos seguintes termos:

O recurso de apelação interposto sufraga-se nos artigos 680º n.º 2 do Código de Processo Civil e 4º al. i) da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro ex vi do art. 147º-A da Organização Tutelar de Menores.

Resulta das disposições legais referidas o “direito de participação” de quem tem a guarda de facto do menor e a legitimidade para recorrer das “pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão (...) ainda que não sejam partes na causa”.

Assim, não pode deixar de entender-se que o “direito de participação” inclui o direito de recurso de quem tem a guarda de facto da menor, num processo de regulação do poder paternal que decide retirar-lhes a criança e entregá-la ao pai biológico, que a mesma nem conhece.

Aliás, a legitimidade para recorrer é garantida expressamente pelos arts. 123° n.º 2, 104° n.º 1 e 105° n.º 2 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo “a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem”.

Ora, a sentença a quo de que se pretende apelar considerou provados os seguintes factos:

- “28 — A menor vive actualmente com B. e C....”

- “30 —...a entrega da criança, o que aconteceu em 28 de Maio de 2002...”

- “35 — Em Março de 2004 a Segurança Social requereu neste Tribunal a confiança judicial da menor, com vista a futura adopção, ao casal composto por B. e C.”.

E, expressamente refere:

- “A menor encontra-se, de facto, à guarda de terceiras pessoas». (pág. 11)

- “Em termos económicos é o referido casal que oferece melhores condições à menor, não se questionando também que o mesmo possua um enorme afecto por esta, tratando-a como se sua filha fosse” (pág. 16).

- “Atenta a circunstância de a mesma ter estado desde os 3 meses a viver com o casal a quem foi entregue”. (pág. 17)

- “... relativamente à pendência do processo de confiança judicial com vista a futura adopção (...) os presentes autos demonstraram também, indirectamente, a inexistência dos pressupostos de adoptabilidade ...“

Dúvidas não restam, pois, que os recorrentes vêm exercendo a guarda de facto sobre a menor, entendida como a relação que se estabelece entre a criança e a pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente (e exclusivamente) as funções essenciais (e as demais) próprias de quem tem responsabilidades parentais (art. 5º al. b) da Lei 147/99 de 1 de Setembro), desde que a menor tinha 3 meses de idade, e que, a sentença em causa, os prejudica directa e efectivamente.

Porém, o Meritíssimo Juiz a quo “indeferiu” o recurso interposto pelos recorrentes, alegando a sua ilegitimidade, com base nos arts. 680º e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil e condenou-os em custas no valor de 2 UC’s.

É pois patente que o recurso não foi admitido uma vez que, certamente por lapso, o Tribunal a quo não atendeu ao disposto no art. 147°-A da Organização Tutelar de Menores, que manda aplicar os princípios previstos na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, entre os quais se encontra o da participação de quem tiver a guarda de facto do menor, que inclui o direito de recurso.

Este normativo legal sobrepõe-se ao estatuído no Código de Processo Civil, pois lex specialis derrogat lex generalis.

Aliás, a não admissão do recurso com fundamento nos art. 680° e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil é uma interpretação que implica a inconstitucionalidade destas normas, por violação dos artigos 20°, 13° e 69° da Constituição da República Portuguesa, concernentes ao direito de acesso aos Tribunais e ao princípio da igualdade e ao dever de protecção da criança.

Na realidade, está em causa impedir o direito de intervenção processual de quem tem a guarda de facto do menor, negando de forma injustificada a possibilidade de actuação ou expressão dos interesses que se pretenderam prosseguir com a introdução do art. 147°-A da Organização Tutelar de Menores, pela Lei n.º 133/99 de 28 de Agosto.

Acresce que o art. 687° n.º 3 do Código de Processo Civil prevê o indeferimento do requerimento de interposição do recurso, mas não define as situações elencadas, não sendo fundamento bastante para motivar o indeferimento.

E, o art. 680º do Código de Processo Civil, que estabelece a regra geral sobre “quem pode recorrer”, alarga a legitimidade para o recurso a terceiros que sejam directa e efectivamente prejudicados pela decisão, através do n.º 2. Note-se que, a título de exemplo, Lebre de Freitas indica “podem figurar-se os casos de terceiros destinatários de uma decisão judicial que ordene a entrega de documentos em seu poder” (Código de Processo Civil anotado, vol. 3, pág. 22).

Logo, terceiros com legitimidade para recorrer hão-de ser também os destinatários de uma decisão judicial que ordena a entrega de uma menor sobre quem têm a guarda de facto.

Então, a decisão sub judice é contra legem, tanto por violar o n.º 2 do art. 680° do Código de Processo Civil, quanto por ignorar o art. 147°-A da Organização Tutelar de Menores.

Resulta portanto que os recorrentes têm legitimidade para interpor o recurso de apelação.

Em face do exposto, forçoso é concluir que o recurso interposto terá de ser admitido.

Concluindo:

Tendo o Meritíssimo Juiz a quo proferido despacho que indeferiu o requerimento de interposição do recurso de apelação interposto da sentença proferida nos autos, com fundamento em ilegitimidade dos recorrentes, é manifesto que ocorre aqui lapso por não atender às normas dos arts. 680º nº 2 do Código de Processo Civil e 4º al. i) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo aplicável ex vi do art. 147° A da Organização Tutelar de Menores e erro de interpretação e aplicação dos arts. 680° n.º 1 e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil.

Digne-se Vossa Excelência admitir a presente reclamação e não a ter por impertinente ou dilatória e, em consequência, julgá-la procedente e ordenar o recebimento do recurso interposto.

Todavia, a reclamação foi indeferida por despacho do Presidente da Relação de Coimbra, com o seguinte teor:

No 2°. Juízo da Comarca de Torres Novas, a Digna Procuradora-Adjunta intentou acção de Regulação do Exercício do Poder Paternal da menor A. contra seus pais D. e E..

Proferida a sentença que regulou o referido poder paternal, surgiram B. e mulher C. pretendendo interpor recurso daquela sentença, recurso que não foi recebido com o fundamento de aqueles cidadãos não serem titulares da relação controvertida e, portanto, não terem legitimidade para o efeito.

Daí a presente reclamação dos mesmos cidadãos, pretendendo obter o recebimento do recurso, alegando que a menor se encontra, de facto, à sua guarda, como se vê da sentença, o que lhes confere legitimidade para o recurso nos termos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável por força do art. 147-A da OTM. De qualquer forma, consideram-se directa e efectivamente prejudicados pela decisão...

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