Acórdão nº 18/06 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Janeiro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Benjamim Rodrigues
Data da Resolução06 de Janeiro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 18/06

Processo n.º 61/05

  1. Secção

Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

A – Relatório

1 – O Ministério Público interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), recurso para o Tribunal Constitucional da sentença proferida pela 9.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa na qual se julgou “inconstitucional a norma extraída dos artigos 175º, nºs 2, 3 e 4, e 176º do Código Civil, na interpretação segundo a qual apenas é admissível o voto por procuração nas deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva, estando o voto por procuração vedado nas deliberações enunciadas nos nºs 2 e 3 do artigo 175.º do Código Civil, por violação dos artigos 2.º, 12.º, n.º 2, 13.º, 18.º, n.º 2, e 46.º, nºs 1 e 2, da Constituição”.

2 – A decisão recorrida estribou-se na seguinte fundamentação:

“(...)

Entende o Autor que a norma estatutária da Ré constante do Artigo 26º, nºs 1 e 2, é nula, por contrária ao disposto no Artigo 175º, nºs 2 e 3, do Código Civil, na medida em que este exige maioria absoluta dos associados presentes nas assembleias gerais para serem tomadas deliberações, sendo certo que tal maioria abrange apenas os votos dos associados presentes e não os votos por procuração.

Dispõe o Artigo 175º do Código Civil que:

"1. A assembleia não pode deliberar, em primeira convocação, sem a presença de metade, pelo menos, dos seus associados.

  1. Salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes.

  2. As deliberações sobre alterações dos estatutos exigem o voto favorável de três quartos do número dos associados presentes.

  3. As deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.

  4. Os estatutos podem exigir um número de votos superior ao fixado nas regras anteriores.".

    O Autor ancora a sua pretensão numa interpretação deste normativo que vem sendo subscrita por diversos acórdãos, designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.6.2002, Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj, cujo âmago passamos a citar:

    "Ora, nas associações sem fim lucrativo, continuando o legislador a atentar no carácter predominantemente colectivo dos interesses tutelados, impôs a observância de um quórum deliberativo necessário para fazer prevalecer a vontade individual e esclarecida dos associados presentes. Assim, para a mera representação de interesses profissionais, como são aqueles que representam interesses de uma classe, a lei exige a comparência dos associados, como forma de se assegurar de que as deliberações são tomadas de harmonia com a vontade livre e esclarecida do órgão deliberativo (composto, justamente, de todos e cada um dos presentes). Sem embargo de, em certos casos, supondo necessariamente a dificuldade de constituição do quórum exigido para a aprovação das deliberações apenas com os associados presentes na assembleia, como por exemplo no n.º 4 do art. 175º, quando trata das deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da associação, aluda tão-só ao número de todos os associados, omitindo, sem dúvida intencionalmente, a necessidade da sua presença efectiva. Não sendo admissível fazer uma interpretação extensiva dos nºs 1 e 2 do art. 175º, para abranger os associados representados, abonando-se com o n.º 1 do artigo 176º que alude à representação no direito de voto, e com o artigo 180º que se refere à transmissibilidade, ao abrigo de disposição estatutária, da qualidade de associado. Desde logo, pelo confronto das normas do art. 175º, nºs 2 e 3, por um lado, e do nº 4 do mesmo artigo (e também do art. 176º), por outro, parece ser de concluir que, quando se referem a associados presentes, aqueles nºs 2 e 3 visam a presença física dos associados votantes, ao contrário do que acontece com o nº 4 (dissolução e prorrogação), em que se prescinde dessa presença, admitindo-se, tacitamente, a mera representação e o voto por procuração. Assim, "a única maneira de conciliar estas disposições é considerar que a referência à votação por representação feita no art. 176º se entende apenas aplicável aos casos em que o art. 175º a não proíbe, isto é, nas deliberações sobre dissolução ou prorrogação da associação (nº 4). Nestes casos, a importância das resoluções a tomar e o quórum exigido (três quartos dos votos de todos os associados) explicariam a transigência com a votação por procuração".

    Este Acórdão, tal como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.6.1996, Aragão Seia, CJ 1996 - II, pg. 132, abona-se no ensinamento - já longínquo - de MARCELO CAETANO, “As pessoas colectivas no Novo Código Civil Português", in O Direito, Ano 99º, pg. 108. Subscrevendo a mesma posição, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 4.6.2001, Fernandes do Vale, e de 6.5.2002, Fonseca Ramos, acessíveis em www.dgsi.pt /jtrp.

    Ora, constitui princípio básico da ciência do direito que o mérito de uma interpretação jurídica advém - não do número de decisões que a subscrevem – mas da qualidade e sustentabilidade dos respectivos argumentos, pelo que – com a modéstia inerente à nossa posição de tribunal de 1ª instância – cremos que haverá que discordar da interpretação que vem sendo superiormente adoptada.

    Interpretar uma norma consiste em fixar o sentido e alcance com que há-de valer, determinando o sentido decisivo.

    A letra da norma é o ponto de partida de toda a interpretação, constituindo a apreensão literal do texto já interpretação, embora incompleta, tomando-se depois necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal.

    Na actividade interpretativa, a lei funciona simultaneamente como ponto de partida e limite de interpretação, sendo-lhe assinalada uma dimensão negativa que é a de eliminar tudo quanto não tenha qualquer apoio ou correspondência ao menos imperfeita no texto – cf. artigo 9º, nº 2, do Código Civil.

    A lei é, antes do mais, um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor corresponda a essa finalidade e, por isso, em toda a plenitude que assegure tal tutela.

    Conforme refere FRANCESCO FERRARA, Interpretação e aplicação das leis, 4ª ed., 1987, pg. 128, "Entender uma lei, portanto, não é somente aferir de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções (...) / A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o seu valor, (...) reconstruir o pensamento legislativo. / Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e representa na vida social uma verdadeira força normativa."

    Na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal intervêm elementos sistemáticos, históricos, racionais e teleológicos.

    O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que forma o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões paralelas. O elemento sistemático compreende ainda a concordância da norma com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.

    O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pela edição da norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

    O intérprete deve combinar tais elementos numa tarefa de conjunto de modo a descobrir o sentido decisivo da norma.

    Findo o trabalho hermenêutico, o intérprete atingirá uma das seguintes modalidades de interpretação: declarativa, extensiva ou restritiva.

    Na primeira, o intérprete limita-se a eleger o sentido literal ou um dos sentidos literais que o texto directa e claramente comporta, por esse caber no pensamento legislativo.

    Na segunda, o intérprete reconhece que o legislador foi traído pelas palavras que utilizou já que o sentido da norma ultrapassa o que resulta estritamente da letra. Nesse caso, para obedecer à letra da lei, o intérprete deve procurar uma formulação que traduza correctamente a regra contida na lei - cf. OLIVEIRA ASCENÇÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11ª ed., Almedina, 2001, pg. 409.

    Na terceira, o intérprete reconhece que o legislador utilizou uma forma demasiado ampla, quando o seu sentido é mais limitado pelo que se deve restringir o texto para exprimir o verdadeiro sentido da lei.

    Volvendo ao caso em apreço, há que assinalar que a interpretação em causa padece de uma contradição, intrínseca e insanável. Assim, sendo a deliberação de dissolução da pessoa colectiva a deliberação - pela sua própria natureza – mais gravosa que pode ser tomada pela assembleia geral, não faz sentido admitir que a mesma seja tomada com recurso a voto por procuração e as demais, necessariamente menos gravosas, sejam tomadas sem possibilidade de recurso a voto por procuração.

    Nem se argumente com a necessidade de comparência para fazer prevalecer a vontade livre e esclarecida dos associados porque isso equivaleria a afirmar que, na hipótese de voto por procuração para dissolução da pessoa colectiva, o voto não seria esclarecido...

    Os elementos sistemático e racional em que se apoia a tese que vem prevalecendo saem, deste...

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