Acórdão nº 340/05 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Junho de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Gil Galvão
Data da Resolução22 de Junho de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 340/05 Processo n.º 263/05 3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, foi proferida decisão, em 10 de Fevereiro de 2005, que recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, ao disposto no artigo 97º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto. Para tanto, escudou-se aquela decisão, em síntese, na seguinte fundamentação:

“Dispõe o artigo 97° do Código do Notariado que "os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura", sendo punido, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 360° do Código Penal, com "pena de prisão de 6 meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias".

No caso em apreço, os arguidos encontram-se pronunciados pela comissão, cada um deles, de um crime de Falsas Declarações, p. e p. pelo n.º 1 e n.º 3 do artigo 360° do Código Penal, com remissão para o artigo 97° do Código do Notariado.

Como se depreende da construção normativa exposta, o tipo legal incriminador, o tipo-de-ilícito, não se encontra no crime de falsas declarações do artigo 360° do Código Penal, mas sim na norma penal avulsa do artigo 97° do Código do Notariado. Com efeito, esta é uma norma típica, configurando a previsão dos elementos objectivo e subjectivo de uma conduta que é penalmente sancionável, sendo apenas ao nível da moldura penal em abstracto aplicável que esta norma nos remete para o tipo do artigo 360° do Código Penal. O artigo 97° do Código do Notariado não é uma norma remissiva ou secundária, é um tipo legal autónomo e determinado, que não se encontra subordinado aos requisitos típicos do artigo 360° do Código Penal, que é um tipo legal autónomo.

Assim, a conduta imputada aos arguidos encontra-se prevista e punida no artigo 97° do Código do Notariado, sendo esta norma que, literalmente, remete para as penas aplicáveis para o crime de falsas declarações.

E não poderia ser de forma diferente a construção jurídica operada pelo legislador, uma vez que, por um lado, o bem jurídico protegido no âmbito de cada uma das normas típicas não é o mesmo, ou seja, o âmbito de protecção e o fim da norma são diversos, e, por outro lado, a conduta típica punível em cada um deles também não é similar nem se compenetra, sendo ambas normas típicas autónomas.

Assim, o bem jurídico protegido pelo crime de falsas declarações do artigo 360° do Código Penal é "a realização ou administração da justiça como função do Estado"[1], o interesse que a administração da justiça estadual tem no sentido de alcançar a boa administração da justiça, assegurando a veracidade dos depoimentos, relatórios, informações e traduções carreados para um processo, o que é imprescindível para a determinação da factualidade relevante para uma boa decisão por parte do órgão competente.

Já o bem jurídico protegido na norma típica do artigo 97° do Código do Notariado tem uma natureza diversa. Com efeito, o bem jurídico protegido é em tudo similar ao bem jurídico protegido pelo tipo de crime de falsificação de documentos, do artigo 256° do Código Penal, porquanto visa proteger o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental [2], atentas as duas funções que o documento pode ter, a "função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana" e a "função de garantia[”], pois cada autor [de] documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs" [3].

[...]

Esta análise comparativa dos bens jurídicos protegidos no âmbito destas duas normas permite retirar, desde já, duas conclusões. Assim, e desde logo, que estamos perante dois tipos legais de crimes autónomos, porquanto protegem bens jurídicos diferenciados. Por outro lado, depreende-se que a conduta por que vêm pronunciados os arguidos apenas pode ser subsumível, por ora, ao âmbito de punição do artigo 97° do Código do Notariado, porquanto tais condutas apenas são susceptíveis de lesar o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.

Os elementos típicos são igualmente diversos. Assim, o tipo legal de crime do n.º 1 do artigo 360° do Código Penal tem como elementos do tipo: o agente; a prestação de uma declaração falsa perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova; o dolo.

O primeiro dos requisitos apontados traça desde logo uma delimitação ao âmbito de aplicação desta norma. Com efeito, este crime "pressupõe que o autor da declaração falsa se encontre investido em uma particular e precisa função processual"[4], que a norma define como sendo a qualidade de testemunha, perito, técnico e tradutor ou intérprete, sendo esta qualidade determinada no âmbito do direito processual respectivo. Quanto ao elemento da falsidade de declaração, importa desde já delimitar o conceito de declaração. Assim, declaração é "toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas"[5], sendo que a falsidade da declaração só será relevante desde que o declarante se encontre sujeito a um dever processual de verdade e completude.

A doutrina delimita o âmbito do dever de verdade e completude em três factores, a função processual do declarante, o objecto do interrogatório, porquanto fora do objecto da produção de prova inexiste o dever de declarar, e as regras processuais relativas à prestação da declaração, quer seja por incompetência da entidade processual à qual se preste a declaração, porquanto o elemento da competência orgânica faz parte do tipo legal, quer seja por inobservância das formalidades essenciais ao acto no qual a declaração é prestada.[6]

No que diz respeito ao elemento da falsidade, sem prejuízo de entendimento diverso, entende o Tribunal, como aliás a doutrina maioritária, que se encontra consagrada pelo legislador a teoria objectiva, segundo a qual a falsidade da declaração "reside na contradição entre o declarado e a realidade", em detrimento da posição da teoria subjectiva, segundo a qual é falsa a declaração quando exista "contradição entre a declaração e a ciência ou conhecimento do declarante"[7].

Finalmente, exige a norma típica o dolo, em qualquer das suas formas, abrangendo quer a consciência da falsidade da declaração, quer a consciência de que a declaração falsa se inclui no âmbito do dever de declarar com verdade, e, bem assim, o...

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