Acórdão nº 22/04 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Janeiro de 2004
Magistrado Responsável | Cons. Helena Brito |
Data da Resolução | 14 de Janeiro de 2004 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO N.º 22/04 Proc. n.º 224/03 1ª Secção
Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
-
A. instaurou, em Janeiro de 1997, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B. e mulher, C., e D., pedindo que os primeiros réus sejam condenados a pagar à autora a indemnização de 5.510 contos, acrescida de juros desde a citação, devida pelo não cumprimento, pelos primeiros réus, do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma do imóvel identificado nos autos, celebrado em Janeiro de 1994, e bem assim que se declare que a autora goza do direito de retenção sobre a mesma fracção autónoma.
Julgada parcialmente procedente a acção em 1ª Instância, foi interposto recurso de apelação, quer pela autora A., quer pelos réus B. e C. (tendo o recurso desta última ficado deserto).
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 13 de Junho de 2002 (fls. 351 a 366), negou provimento à apelação do réu B. e concedeu provimento à apelação da autora A., condenando os réus B. e mulher, C., a pagar à autora a quantia de ? 15.064, correspondente ao crédito resultante do não cumprimento por parte destes do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma em causa e declarando que, para efeitos do artigo 869º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, ?tal direito goza de garantia real, correspondente ao direito de retenção?, revogando, nesta parte, a decisão recorrida.
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A D. e B. interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações que então produziu (fls. 391 a 398), a D. formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
?[...]
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? O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente-comprador, fixado através do D.L. 236/80, de 18/07, e D.L. 379/86, de 11/11, e constante das normas contidas no n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambas do C. Civil, frustra a legítima confiança que o credor hipotecário tem em que o Estado garanta os seus direitos fundamentais;
-
? A hipoteca foi constituída e registada em 1993 e o contrato-promessa foi celebrado em 1994;
-
? No caso dos autos a recorrente vê-se confrontada com um direito real de garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava;
-
? Tal direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada cerca de um ano antes;
-
? É uma injustiça para o credor hipotecário sofrer a ofensa dos seus interesses e direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação do direito de retenção;
-
? A recorrente credora hipotecária vê frustrada a confiança no comércio jurídico imobiliário;
-
? No acórdão recorrido encontra-se manifestamente violado o princípio da confiança do comércio jurídico, princípio constitucional contido no artigo 2º da C.R.P.;
-
? Os ónus ocultos não registados afectam a segurança no comércio jurídico;
-
? Os referidos diplomas e as normas em apreço, o n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambos do C. Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, são inconstitucionais por violação do princípio da confiança do comércio jurídico ínsito no artigo 2º da C.R.P.;
-
? Os D.L. n.º 236/80, de 18/07, e n.º 379/86, de 11 de Novembro, são inconstitucionais por regularem matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais da competência exclusiva da Assembleia da República;
-
? Para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria necessitava de autorização do ente legislativo competente;
-
? Não foi concedida tal autorização;
-
? Ao fazer inovações sobre tal matéria sem autorização houve a violação da esfera de competência de outro órgão;
-
? Verifica-se assim haver inconstitucionalidade orgânica;
-
? O n.º 2 do artigo 442º e a alínea f) do n.º 1 do artigo 755º, ambos do C. Civil, são inconstitucionais;
-
? Sendo inconstitucionais tais normas, bem como os diplomas de onde emanam, não podem as mesmas ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial;
[...]
-
? Ao julgar-se como se julgou, encontram-se violadas as normas de ordem substantiva e processual, nomeadamente os artigos 442º, n.º 2, e al. f) do n.º 1 do artigo 755º do CC, artigo 661º, n.º 1, do CPC e ainda os artigos 2º e 20º da CRP;
-
? Pelo que a referida decisão é ilegal;
Nestes termos, deve [...] ser declarada a inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, todos do C. Civil, por na sua interpretação e aplicação nos presentes autos, ter sido violado o n.º 1 do artigo 20º da C.R.P. e artigo 2º da C.R.P. e, ainda, declarada a inconstitucionalidade orgânica do D.L. 236/80, de 18/07, e D.L. 379/86, de 11/11, devendo em consequência ser revogado o douto acórdão recorrido, que confere à A. o direito de retenção, que ofende o seu direito de hipoteca, registado a seu favor anteriormente, por tais normas legais e os diplomas de onde emanam enfermarem de inconstitucionalidade [...].?
Por sua vez, B. concluiu assim as suas alegações (fls. 402 a 407), para o que aqui releva:
?[...]
7 ? A disciplina dos artigos 442º n.º 2 e f) do n.º 1 do 755º do C.C., com a redacção introduzida pelos D. Lei 236/80 e 379/86 frustra a confiança no comércio jurídico previsto no art.º 2º da CRP, pelo que são estas disposições materialmente inconstitucionais.
8 ? O Governo carecia de autorização legislativa da Assembleia da República para legislar em tais matérias, pelo que se verifica igualmente a inconstitucionalidade orgânica de tais diplomas.
[...]
10 ? Foram violados por erro de interpretação os artigos 258º, 262º, 220º, 334º, 442º e 755 do CC, 272º, 273º, 661º e 713º do CPC e ainda os artigos 2º e 20º da CRP;
[...].?
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Janeiro de 2003 (fls. 437 a 452), negou provimento às revistas, confirmando o anteriormente decidido pela Relação.
Sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes, lê-se no texto desse acórdão:
?[...]
Os DL 236/80 de 18-7 e 379/86 de 11-11 têm sido criticados na doutrina por conferirem ao promitente-comprador direito de retenção [...].
Não se tem posto em dúvida, que saibamos, a sua conformidade ao diploma fundamental (CR).
Não se invoque nomeadamente o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito Democrático (art.º 2º da CR).
O art.º 20º, também citado, não vem ao caso.
Como escreve Galvão Teles [...], os credores não podem queixar-se pelo facto de o direito de retenção não estar sujeito a registo.
Em primeiro lugar, porque o registo não é aplicável a todas as coisas.
Inclusive a todos os imóveis (pense-se nos privilégios creditórios).
Depois, e esta é uma ideia relevante:
o direito de retenção envolve por si publicidade de facto.
Os credores hipotecários só têm que averiguar quem na realidade habita ou tem a posse do prédio...
Não se diga que estão em causa direitos fundamentais, que não é o caso.
Nem se pode falar de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias.
Está em causa apenas a organização económica dos bens.
Não se vê que a concessão do direito de retenção ao promitente-comprador viole qualquer desses direitos dos credores hipotecários.
Tão pouco os DL em apreço fazem parte da competência exclusiva da Assembleia da República ? art.º 164º e 165º da CR (na época art.º 168º-1-b).
Não necessitava o Governo de autorização legislativa para legislar sobre esta matéria.
Este Tribunal pronunciou-se noutras ocasiões pela conformidade à CR dos DL 236/80 [...] e 379/86 [...].
Improcedendo as razões dos recorrentes, negam-se as revistas.
[...].?
-
-
É deste acórdão que a D. vem recorrer para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 462 e seguinte), ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie:
? a inconstitucionalidade material ?dos diplomas legais D.L. 236/80, de 18/07, e D.L. 379/86, de 11/11, que concedem o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou sua fracção autónoma, por tal direito ofender os interesses patrimoniais legitimamente constituídos, no caso dos autos, de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação do direito de retenção?;
? a inconstitucionalidade das normas contidas no n.º 2 do artigo 442º e na alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambas do Código Civil, ?por violação do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, ofendendo o princípio geral de Direito aí consagrado, a confiança do comércio jurídico?;
? a inconstitucionalidade orgânica ?dos diplomas acima referidos que introduziram alterações ao artigo 442º do Código Civil, tendo sido a alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º do mesmo diploma legal introduzida pelo D.L. n.º 379/86, de 11/11, que criaram um direito na esfera jurídico-patrimonial do promitente comprador?, ?com ofensa do princípio constitucionalmente consagrado da reserva de lei?, por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da C.R.P. [actual artigo 165º, n.º 1, alínea b)].
O recurso foi admitido por despacho de fls. 467.
-
Nas alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 469 a 479), a recorrente formulou as seguintes conclusões:
?I - As normas contidas no n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e a alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do mesmo diploma legal, ao abrigo das quais foi concedido o direito de retenção à Recorrida promitente-compradora, quando invocadas perante o credor hipotecário, que tem a seu favor um direito de hipoteca, devidamente registado em data anterior à constituição daquele direito, criou uma situação injustificada e de privilégio, com o consequente prejuízo da ora Recorrente credora hipotecária, são materialmente inconstitucionais por violarem os princípios da proporcionalidade, protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário, ínsitos no artigo 2º da Constituição da República...
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