Acórdão nº 158/04 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Março de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução17 de Março de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 158/2004 Processo n.º 64/03

  1. Secção

Relator: Cons. Mário Torres (Cons.ª Maria Fernanda Palma)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

  1. Relatório

    1.1. Na acção de divórcio litigioso instaurada por A. contra B., foi, por sentença de 31 de Julho de 2001 do Juiz do Círculo Judicial de ------------------, decretado o divórcio, sendo ambos os cônjuges declarados igualmente culpados.

    A ré apelou desta sentença, propugnando que o autor fosse declarado único culpado ou, se assim se não entender, principal culpado, mas, por acórdão de 2 de Maio de 2002, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, com a seguinte fundamentação:

    ?1. Através da presente acção pretende o autor obter a dissolução do casamento celebrado com a ré por, no seu entender, esta ter violado os deveres conjugais de respeito, de cooperação e de coabitação a que estava vinculada na constância do casamento e por causa dele.

    Por sua vez, a ré também pediu a dissolução do vínculo conjugal que a une ao autor, mas por alegada violação por parte deste dos deveres conjugais de cooperação, de respeito e de coabitação, bem como a sua condenação no pagamento de uma indemnização por alegados danos de natureza não patrimonial, causados pela dissolução do casamento.

    Resulta, porém, dos autos que o Tribunal a quo decretou o divórcio mas com base na culpa de ambos os cônjuges, em igual proporção.

    Na sua apelação, defende a ré que existe culpa exclusiva do autor e, como tal, deve este ser considerado o principal culpado do divórcio, por violação do dever conjugal de cooperação, ao não auxiliar a ré na sua doença de depressão, doença que se provou, em Tribunal, a ré padecer.

    Está, assim, em causa saber se:

    1. ? O autor violou os referidos deveres conjugais, nomeadamente, o de cooperação:

    2. ? E, em caso afirmativo, se resulta dos autos que o autor é o único e principal culpado do divórcio decretado.

    Apreciando.

  2. No âmbito do divórcio litigioso e para que este proceda com fundamento na violação dos deveres conjugais, a que estão reciprocamente vinculados ambos os cônjuges, rege o princípio geral de que qualquer violação culposa de deveres conjugais pode servir de fundamento ao pedido de dissolução do casamento, desde que assuma relevância suficiente para esse efeito.

    Ou seja, de acordo com os ditames legais preceituados no artigo 1779.º, n.º 1, do Código Civil, qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum.

    Preceito que tem sido interpretado no sentido de que, para tal, mostra-se necessário que o referido comportamento do cônjuge, pela sua gravidade ou reiteração, possa comprometer de forma definitiva a subsistência da relação conjugal, quando objectivamente analisado e inserido no contexto da situação real em que foi praticado. Isto é, quando aferido em concreto.

    Impõe-se, assim, analisar os comportamentos do autor e da ré por forma a verificar em que medida é que qualquer um deles, ou ambos, são violadores, nos termos citados, dos respectivos deveres conjugais, para se concluir em que proporção cada um deles contribuiu, culposamente, para a falência da relação matrimonial existente e foi determinante da dissolução do casamento.

    Tendo presente, para esse efeito, que basta a violação apenas de um dos deveres conjugais, desde que culposa, grave ou reiterada, e o facto violador comprometa a possibilidade de vida em comum.

    A) Comportamento da ré para com o autor:

  3. Está provado nos autos que a ré não o deixava conviver com os amigos, insultava-o, chamando-lhe «ordinário» e «cachopo».

    Resulta também da matéria de facto provada que o casal tinha discussões, inclusivamente numa delas a ré partiu diversas peças de louça do enxoval do autor, e que haviam sido dadas a este pela sua mãe.

    Provou-se ainda que a ré telefonou ao autor dizendo-lhe para ir buscar as suas coisas, porque as ia colocar na rua.

    Ora, tal conduta da ré não pode deixar de ser considerada como violadora do dever do respeito a que estão vinculados ambos os cônjuges, e que a ré, pelo comportamento descrito, violou, ofendendo, com actos e palavras, a sensibilidade moral, o amor próprio e a susceptibilidade pessoal do autor [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Dezembro de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pág. 370].

    Comportamento que põe em causa a manutenção do vínculo conjugal, sendo suficiente para impedir o desenvolvimento harmonioso, pacífico e de bem-estar indispensável a uma vivência sã entre os cônjuges.

  4. Está também provado que a ré nunca assumiu as tarefas domésticas. Quanto a estas, entendemos que o dever de cooperação entre os cônjuges exige a execução comum das tarefas domésticas, cabendo, pois, a ambos os cônjuges a partilha das tarefas domésticas, nos mesmos termos e de acordo com o princípio de igualdade dos cônjuges.

    E, como é sabido, a inexecução das mesmas por parte de qualquer dos cônjuges constitui sempre, no âmbito da vivência matrimonial, um foco de conflitos permanente com repercussões negativas no bem-estar e na harmonia quotidiana do casal [E tanto assim que, a este propósito, salientam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, I vol., pág. 359 e seguintes, que o acordo de repartição de tarefas entre os cônjuges constitui um dos mais importantes acordos sobre a orientação da vida em comum.].

    Situação que pode ser agravada em função da formação educacional dos cônjuges, do meio social em que vivem, da própria profissão que desempenham ou dos encargos profissionais de cada um deles, não sendo despiciendo considerar que, em circunstâncias em que um possua mais disponibilidades do que o outro, pode inclusivamente essa partilha ser alterada para pender mais para um cônjuge do que para o outro, sem que tal facto possa significar violação do referido princípio da igualdade ou quebra do dever de ambos partilharem tais tarefas.

    In casu, a ré, sem ter a exclusiva obrigação de desempenhar tais tarefas, a verdade é que nunca assumiu, pelo menos, com a sua quota parte.

    Sabendo-se, por outro lado, que o autor é motorista de profissão, que se ausenta do lar durante todo o dia, saindo bem cedo de casa e regressando habitualmente já de noite. E que a ré é funcionária de uma Escola, com horário não impeditivo da execução dessas tarefas domésticas. E que, à data, sem filhos, não estava onerada com os trabalhos e cuidados que as crianças impõem e exigem, nada a impedindo, pois, de assegurar a lida da casa nas ausências do autor, pelo menos, numa parte das tarefas domésticas.

    Contudo, provou-se que a ré habitualmente não cozinhava, não lavava a louça, nem limpava a casa.

    Comportamento que manteve mesmo após a sua cunhada e irmã terem metido «mãos à obra» e terem tomado a iniciativa de fazer a limpeza na sua própria casa, para evitarem, desta forma, os conflitos gerados permanentemente entre a ré e o autor ? cf. matéria de facto provada inserida nas alíneas j) e l) (vide também factos das alíneas c) a h)).

    A falta de confecção da alimentação e de limpeza do lar, a falta do tratamento e arranjo das roupas e de lavagem das louças, no quadro descrito, demonstram desinteresse total pela vida do lar. E integram inquestionavelmente violação do dever de cooperação, entendido como a contribuição devida para os encargos da vida familiar e a obrigação de entreajuda dos cônjuges nos problemas quotidianos da sociedade familiar.

  5. É certo que consta dos autos que a ré, a partir de determinada altura, passou a sofrer de depressão. Doença que possibilita uma certa prostração, mas que não serve para justificar tudo.

    Efectivamente, o comportamento de desleixo e desinteresse da ré em relação à casa e à vida familiar, não assumindo, pelo menos, uma parte das tarefas domésticas, remonta ao início do casamento, sendo anterior à sua doença.

    E a depressão, só por si, não serve para justificar tais actos, tanto mais que a ré se mantinha em actividade, a trabalhar, só tendo sido afastada do emprego muito tempo depois.

    Por outro lado, deve ter-se também presente o ambiente social em que autor e ré se integram. Anote-se que ambos vivem numa pequena localidade, num ambiente rural, onde os valores tradicionais ainda imperam e estão bastante arreigados, pelo que o facto de a ré se demitir, reiterada e prolongadamente, do exercício das funções domésticas, não executando tarefas tão essenciais e correntes como cozinhar, lavar louça ou arrumar a casa, é suficientemente grave para comprometer de forma irremediável a vida em comum do casal.

    E integra inequivocamente violação do dever de cooperação por parte da ré.

  6. Atento o que antecede, a conclusão que se impõe é a de que, tendo a ré violado os deveres supra citados, bem andou o Tribunal a quo quando a considerou também como culpada pelo decesso do seu casamento e, nessa medida, decretou o divórcio.

    B) Comportamento do autor para com a ré:

  7. Alega a ré que o autor saiu de casa violando o dever de coabitação. Saída que localiza em Maio de 1999.

    Porém, dos factos provados o que resulta é que a vivência conjugal estava manifestamente em crise.

    Recorde-se que foi a própria ré que expulsou o autor de casa e que, depois de ele sair, não mais lhe permitiu que entrasse em casa e passou inclusivamente a recusar a sua presença ? cf. factos provados descritos nas alíneas p) a u). Neste contexto, não se pode valorizar tal facto, dando-lhe o sentido e alcance pretendido pela ré: o de o autor ter violado o referido dever. A saída do autor está justificada, devendo-se ao próprio comportamento da ré.

    Aliás, é entendimento jurisprudencial dominante que o abandono do domicílio conjugal, só por si, também não constitui fundamento de divórcio. Carece, para tal, que se prove a culpa do cônjuge que praticou o acto de saída. E o ónus da prova dessa culpa recai sobre o cônjuge...

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