Acórdão nº 198/04 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Março de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Moura Ramos
Data da Resolução24 de Março de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃ0 N.º 198/2004 Proc. n.º 39/04 1.ª Secção

Relator: Cons. Rui Moura Ramos

I ? A CAUSA

  1. A. recorre para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 4/12/2003, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que confirmou a sua condenação pelo Tribunal de Relação de Coimbra ? que por sua vez confirmara Acórdão condenatório do colectivo da Vara Mista de Coimbra ? na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

    A sujeição do recorrente a julgamento decorreu de decisão instrutória (a de fls. 501/514) na qual, para além da pronúncia deste e de mais três arguidos, foi desatendida a suscitação, pelo aqui recorrente, da nulidade de diversas intercepções telefónicas ocorridas na fase de investigação.

    Posteriormente, o Tribunal Colectivo, em sede de julgamento, ao proferir o Acórdão condenatório de fls. 602/614, referiu o seguinte, relativamente à motivação de facto dessa mesma decisão:

    ?O tribunal baseou a sua convicção: Quanto aos factos provados:

    Em relação aos arguidos (...) e A.:

    Nas declarações em audiência do arguido (...) ?confessando? ter sido ?interceptado? por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, acompanhado e conduzido pelo arguido A., vinham ambos de Lisboa no veículo deste; ?confessando? que tinha ido a Lisboa adquirir 2,444kg que foram encontrados em casa dos seus pais; ?confessando? que destinava todo o haxixe (5,987 kg e 2,444 kg) à venda; e ?confessando? o modo como conheceu o arguido A. e os contactos com o mesmo.

    No depoimento de (...) confirmando a venda ao arguido (...) do haxixe encontrado em casa dos pais deste.

    Nas declarações em audiência do arguido A. ?confessando? ter sido ?interceptado? por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, conduzindo o seu veículo e acompanhado pelo arguido (...) vinham ambos de Lisboa no seu veículo.

    A propósito de se considerar como provado que o arguido A. sabia que trazia/transportava no seu automóvel os 5,987 kg. de haxixe, baseou-se o tribunal, exclusivamente, nas regras da experiência e na sua ?livre convicção? (art. 127.º do CPP).

    Entendeu o tribunal ser da experiência comum que um transporte de cerca de 8 kg de haxixe não é uma tarefa solitária; sendo os arguidos amigos, tendo-se inclusivamente conhecido num E.P. (quando ambos cumpriam pena por tráfico) e não tendo sido dada uma explicação plausível para a vinda do arguido A. à zona do país onde ambos foram interceptados pela PJ, é convicção do tribunal que o arguido A. sabia perfeitamente que trazia e transportava no seu automóvel os citados 5,987 kg de haxixe.

    O tribunal não ignora que, ultimamente, o uso das regras da experiência e o recurso à livre convicção do tribunal vêm sendo objecto de apertado controlo e censura por parte da 2.ª instância.

    Admite-se mesmo que se possa andar a laborar em erro sobre o uso e limites quer das regras da experiência quer da ?livre convicção do tribunal?, porém, esta é a interpretação que, em sede de prova, entendemos ser nosso dever fazer dos factos conhecidos (...).

    Quanto aos factos não provados:

    Resultaram, como sempre, de sobre os mesmos não haver sido produzida qualquer prova e/ou de a produzida ter sido reputada insuficiente e/ou inválida na convicção do tribunal.

    Não se considerou pois a prova resultante das escutas telefónicas, uma vez que, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião diversa, as mesmas enfermam de invalidade/nulidade que inviabiliza a sua utilização como meio de prova.

    É certo que tais ?vícios?, tendo sido suscitados, pelos arguidos (...) e A., antes do encerramento do debate instrutório (fls. 475 e ss. ? Vol. III) foram objecto de decisão (fls. 501 e ss. ? Vol. III) no processo.

    Acontece, porém, que o arguido A. não se conformou com tal decisão, que desatendeu as nulidades suscitadas, estando pois a mesma pendente de recurso que foi admitido a subir imediatamente e em separado.

    Temos pois que, tendo sido proferida nos autos decisão que versou e incidiu sobre a validade das escutas telefónicas, nos está vedado proferir decisão expressa sobre a mesma questão.

    Todavia, uma vez que tal decisão não transitou em julgado, não estávamos ? quando, em sede de deliberação para a sentença, apreciámos a validade da prova produzida ? vinculados a tal decisão pese embora o efeito meramente devolutivo do recurso.

    Foi justamente o que aconteceu, tendo-se, na deliberação para sentença, considerado que a prova resultante das escutas telefónicas enferma de invalidade/nulidade que inviabiliza a sua utilização como meio de prova.

    Invalidade/nulidade que, repete-se, não se irá declarar em decisão autónoma (uma vez que tal questão foi já autonomamente apreciada e está sob recurso), mas que não pode deixar de repercutir-se, no caso e concretamente, na não valoração da prova produzida resultante das escutas telefónicas.

    Efectuado tal esclarecimento, cumpre explicar o motivo por que foi deliberado que as escutas telefónicas enfermam de invalidade/nulidade que inviabilizam a sua utilização como meio de prova.?

    A este respeito explicitou o Tribunal que tais intercepções telefónicas eram, no seu entender, nulas por inobservância dos respectivos requisitos de legitimação, designadamente à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional consubstanciada no Acórdão n.º 407/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37.º vol., pág. 245; Diário da República ? II Série, de 18/7/1997). Em função deste entendimento, concluiu o Tribunal de Primeira Instância, nos seguintes termos:

    ?Entendeu-se (...), em conclusão, que foram violados os artigos 187.º, n.º 1 e 188.º, n.º 1 do CPP, violações que, face ao disposto nos artigos 189.º e 126.º, n.º 1, ambos do CPP e 32.º, n.º 6 da CRP, acarretam a proibição de prova, não tendo, por conseguinte, a prova obtida e produzida pelas escutas sido por nós utilizada para a fixação dos factos provados.

    Do mesmo modo, não foi utilizada a prova cuja obtenção dependeu das escutas (artigo 122.º, n.º 1, parte final do CPP), o mesmo é dizer, a apreensão de droga efectuada no dia 3/7/2001, cerca das 21,30 horas, na Portagem da Auto-Estrada da Mealhada. Não utilização que é o corolário do «efeito à distância» da proibição de valorar as escutas telefónicas.?

    1.1. Inconformado, recorreu desta decisão o arguido A. para o Tribunal da Relação de Coimbra. Neste recurso viria a retomar a questão das escutas declaradas nulas, defendendo que da aplicação das ?regras do «efeito-à-distância», ínsito no artigo 122.º do CPP?, decorreria a conclusão segundo a qual ?jamais se poderia ter valorado os depoimentos dos arguidos A. e (...), pois os mesmos estão contaminados em consequência da nulidade das intercepções telefónicas?, pois ?o corolário do «efeito-à-distância» dá-se no momento da existência/identificação destes dois arguidos? e, ?sem estes dois arguidos não existiria viagem/apreensão/declarações? (citações retiradas das alegações de fls. 630).

    Decidindo o recurso, que, como se referiu, confirmou a decisão do Tribunal de 1ª instância, consignou o Tribunal da Relação, quanto aos efeitos da declaração de nulidade das escutas:

    ?Declaradas nulas, e sem contestação, as escutas telefónicas, quer o recorrente que se tirem daí efeitos e consequências, como seja declarar nulos os seguintes factos: - a existência dos arguidos (...) e A.

    - a sua identificação

    - a viagem destes dois arguidos até Coimbra

    - a apreensão da ?droga? no veículo conduzido pelo recorrente A., por considerar que tais factos resultaram das escutas telefónicas.

    Transcreveu-se acima a fundamentação da matéria de facto, na sentença.

    Aí o Tribunal afastou expressamente a prova recolhida pelas escutas telefónicas, apoiando-se nos dados objectivos recolhidos na audiência, como sejam, e foi dado realce, a confissão dos arguidos

    Não ficam dúvidas que tais dados objectivos, contidos na fundamentação da matéria de facto, conferem com o constante da transcrição.

    E, assim, terá consequentemente de se concluir que a base factual que objectivamente o Tribunal recolheu para formar a sua convicção resulta da prova produzida em audiência.

    O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.

    Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

    - a recolha de elementos ? dados objectivos ? sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

    - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal ? que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal ? mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

    - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

    - assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.

    Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

    Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida...

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