Acórdão nº 594/03 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Dezembro de 2003
Magistrado Responsável | Cons. Helena Brito |
Data da Resolução | 03 de Dezembro de 2003 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 594/03 Proc. n.º 745/00 1ª Secção
Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
-
A A., ora recorrente, requereu a falência da sociedade B., vindo na sequência de tal processo a ser reclamados os créditos pelos credores daquela sociedade.
Doze credores da sociedade ? a seguir identificados como C. e Outros ? reclamaram a quantia global de 136.956.890$00, invocando que eram titulares de créditos provenientes do incumprimento pela requerida B. de um contrato-promessa, celebrado em 1 de Maio de 1995, de compra e venda de um imóvel composto por terreno e um edifício em construção, sito na freguesia de ----------------, e, bem assim, que gozavam do direito de retenção sobre o mesmo imóvel.
Já no decurso do processo falimentar, em 1 de Março de 1999, D. e mulher propuseram uma acção, ao abrigo do disposto no artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, para o reconhecimento de um crédito, no valor de 23.000.000$00, resultante, tal como o dos reclamantes acima indicados, do incumprimento pela sociedade falida de um contrato-promessa de compra e venda de um prédio urbano identificado nos autos, sito na ------------------, freguesia de ---------------------.
A A. impugnou os privilégios indicados pelos reclamantes, com fundamento em que os créditos reclamados não gozavam do direito de retenção e que o seu crédito tinha prioridade sobre aqueles, por resultar de hipoteca constituída anteriormente à celebração dos contratos-promessa.
Na referida impugnação a A. arguiu:
? a nulidade dos contratos-promessa invocados por preterição das formalidades legais;
? a nulidade da transacção efectuada entre a falida e os primeiros doze reclamantes quanto ao reconhecimento da existência do direito de retenção;
? a inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos 442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que estabelecem o direito de retenção a favor do promitente-comprador de prédio urbano ou de sua fracção autónoma;
? a inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro.
Proferida sentença em 1ª Instância no processo de verificação e graduação de créditos, foram graduados, em primeiro lugar, os créditos reclamados acima indicados e, em segundo lugar, o crédito da A..
Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 2 de Dezembro de 1999 (fls. 420 a 434), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
-
A A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado nas alegações que então produziu (fls. 448 a 472), entre outras, as seguintes conclusões:
?[...]
X ? Não reconhecendo legitimidade à recorrente para arguir a nulidade, como o fez o Senhor Juiz ?a quo? na sentença recorrida, foi-lhe negado o direito à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, direito fundamental constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 20º da C.R.P.
XI ? Enferma de inconstitucionalidade em concreto a sentença recorrida por violação do n.º 1 do artigo 20º da C.R.P.
XII ? Padece, também, de inconstitucionalidade, em concreto, a aplicação aos presentes autos do entendimento vertido no Assento do S.T.J. de 28 de Junho de 1994, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 20º da C.R.P.
[...]
XXIV ? Os diplomas legislativos ? Decretos-Leis 236/80, de 18 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro ? que vieram conceder o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de sua fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa são inconstitucionais por tal direito ofender os interesses patrimoniais legitimamente constituídos, no caso presente o direito de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação de tal direito de retenção.
XXV ? A preferência resultante do direito de retenção sobrepõe-se de forma atentatória à hipoteca, e, no caso dos presentes autos, causa elevados prejuízos à recorrente face ao valor dos créditos e ao valor de venda do imóvel, ainda não concluído e muito degradado, reduzindo ou eliminando na prática para a recorrente a sua garantia patrimonial.
XXVI ? É assim violado, em concreto, no caso dos presentes autos, o princípio de consagração constitucional da confiança do comércio jurídico, bem como o princípio constitucional ínsito no artigo 2º da C.R.P. (confiança).
XXVII ? As normas constantes do n.º 2 do artigo 442º e alínea f) do artigo 755º, ambas do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei 379/86, de 11 de Novembro, são materialmente inconstitucionais, sendo inaplicáveis à situação concreta dos presentes autos.
[...]
XXXI ? O artigo 442º do C. Civil sofreu duas alterações introduzidas por cada um dos referidos diplomas e a alínea f) do artigo 755º do mesmo Código foi introduzida pelo Dec-Lei de 1986, que criaram um direito na esfera jurídico-patrimonial do promitente-comprador.
XXXII ? Trata-se de matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais que são da competência exclusiva da Assembleia da República e para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria carecia de autorização do ente legislador competente.
XXXIII ? O Governo, ao fazer alterações e inovações sobre tal matéria, sem que estivesse legalmente autorizado para o fazer, invadiu uma área que lhe estava constitucionalmente vedada, violando a esfera da competência legislativa de outro órgão de soberania.
XXXIV ? Verifica-se uma inconstitucionalidade orgânica por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da C.R.P. ? actual artigo 165º, n.º 1, alínea b) ?, pois é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre tal matéria, salvo autorização ao Governo (competência relativa), não constando tal autorização ao Governo nos relatórios de tais diplomas.
XXXV ? O n.º 2 do artigo 442º e a alínea f) do artigo 755º, ambos do C. Civil, são normas inconstitucionais, bem como os próprios diplomas de onde emanam, não podendo ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial.
[...]
LII ? No acórdão recorrido foram violados os artigos 2º e n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 205º, n.º 1, 220º, 286º, 375º, n.º 3 do artigo 410º e artigo 1249º, todos do C. Civil, o n.º 1 do artigo 661º do C.P.C. e o n.º 1 do artigo 164º-A e artigo 192º, ambos do C.P.E.R.E.F..
[...].?
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Outubro de 2000 (fls. 501 a 507), negou provimento à revista, confirmando o anteriormente decidido pela Relação.
Lê-se no texto desse acórdão, para o que aqui releva:
?[...]
No entender da recorrente a alteração introduzida pelo DL 379/86 de 11-11, com a modificação do art. 755 n.º 1 al. f), assim como o n.º 3 do art. 442, redacção do DL 236/80, sofrem de inconstitucionalidade orgânica. Aquelas alterações legislativas, consagrando em termos alargados a protecção do promitente-comprador e ao dar-lhe o direito de retenção sobre o prédio que lhe tenha sido entregue, com preterição dos outros credores com outras garantias já constituídas, designadamente o credor hipotecário, legislou em matéria de direitos e garantias patrimoniais. O Governo só o podia fazer com autorização da Assembleia da República, autorização que não dispunha quando legislou sobre tal matéria (art. 168 n.º 1 al. b) da CRP).
Com o devido respeito por opinião contrária, o título II da CRP, subordinado à epígrafe «direitos, liberdades e garantias», não abrange nos seus três capítulos qualquer matéria relacionada com a que vem tratada nos autos.
Entende o Tribunal Constitucional (Ac. 329/99 de 2-6-99, DR II série de 20-7-1999) que apesar de o «direito de propriedade privada ser de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver natureza análoga aos direitos liberdades e garantias». E como direito de dimensão análoga indica o caso da expropriação por utilidade pública.
Entendemos, por nossa parte, que não se inclui em tal matéria a concessão pelo legislador dum privilégio creditório, que apenas corrige a graduação dos direitos dos credores.
Soçobra a argumentação neste aspecto.
No que se reporta à inconstitucionalidade material também se não vê que ela exista.
[...]
[...] só as normas com que as partes não contavam e que afectem de forma inadmissível e arbitrária ou excessivamente onerosa as expectativas com que os cidadãos contavam, é que violam o princípio da confiança.
Não é esse o caso dos autos porque a A. recorrente já sabia da existência dos DL apodados de inconstitucionais e deveria contar com a possibilidade de surgirem os contratos-promessa e que, com a tradição dos andares, podiam ser constituídos direitos de retenção dos promitentes compradores.
Daí que se não veja que haja tal inconstitucionalidade.
[...]
Também se entende que a invocação dum assento não gera inconstitucionalidade. Só assim aconteceria se essa invocação tivesse o significado de vincular o tribunal à interpretação nele contida.
Não é isso que sucede. A invocação do assento não traduz mais do que a invocação duma orientação interpretativa que se baseia na disposição legal em causa e a que o julgador aderiu.
[...].?
-
É deste acórdão que a A. vem recorrer para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 511 e seguinte), ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas:
? da norma contida no n.º 3 do artigo 410º do Código Civil, por, na esteira da interpretação que é feita no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Junho de 1994, negar ao credor hipotecário, com hipoteca registada anteriormente à celebração do contrato-promessa, legitimidade...
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