Acórdão nº 115/02 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Março de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Tavares da Costa
Data da Resolução12 de Março de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 115/02

Processo nº 567/00

  1. Secção

Rel.: Cons. Tavares da Costa

(Consª Maria dos Prazeres Pizarro Beleza)

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

I

1. - A, impugnou junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto a liquidação de emolumentos relativos à celebração de escritura pública de constituição de propriedade horizontal e de compra e venda de imóveis, na parte em que debita à impugnante a quantia de 9.492.000$00, a título de "acréscimo de emolumento sobre os actos de valor determinado", nos termos do artigo 5º da Tabela de Emolumentos Notariais, na redacção do Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro.

Os fundamentos da impugnação são, em síntese, os seguintes:

"(...)

18º

No entender da impugnante, os emolumentos em causa constituem um verdadeiro imposto.

19º

tratando-se de um imposto, os ditos emolumentos só poderiam ter sido estabelecidos por lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei do Governo no uso de autorização legislativa (cfr. nº 2 do art. 106º e al. i) do n.º 1 do art. 168º da Constituição da República Portuguesa).

20º

Ora, no caso concreto, os emolumentos notariais liquidados à impugnante foram fixados pelo Decreto-Lei n.º 397/83, de 2 de Novembro, o qual não foi precedido da necessária autorização legislativa.

(...)

22º

Os mesmos emolumentos apresentam-se com características aparentemente correspondentes às das taxas, sendo sabido que, quanto a estas receitas públicas, não vigora o princípio da legalidade fiscal.

23º

Reconheça-se, com efeito, que a aparência indicada resulta do facto de, em ligação com o pagamento dos emolumentos, ser prestado um serviço a um utilizador individualizado.

(...)

36º

Entre nós deve também sustentar-se que o montante das taxas não pode ser fixado sem critério: haverá sempre que respeitar um mínimo de proporção entre o custo da actividade administrativa e a quantia que é exigida, em troca, ao particular.

(...)

41º

Ora os emolumentos notariais encontram-se justamente entre aquelas receitas que, muito embora apresentem uma conexão com um serviço público individualizável, estão manifestamente desligadas, quanto ao seu montante, da actividade desenvolvida pela Administração.

42º

Nestes casos, a desproporção entre o tributo e o serviço é tal que se pode dizer que aquele se desligou completamente deste último, tornando-se, em boa verdade, uma receita abstracta.

(...)

49º

Reitera-se: a importância de 9. 492.000$00 é a todas as luzes excessiva, enquanto "contrapartida" do serviço que, alegadamente, se destina a retribuir.

(...)

51º

Com efeito, o art. 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 397/83, de 2 de Novembro, enferma do vício de inconstitucionalidade,

52º

porquanto se deve entender que estabelece um verdadeiro imposto sem estar habilitado por competente autorização legislativa, ofendendo por isso o n.º 2 do art. 106º e a al. i) [do nº 1] do art. 168º da Constituição e o art. 10º da dita Directiva ou

53º

porque, de todo o modo – e particularmente no caso concreto da impugnante–, cria uma receita pública manifestamente desproporcionada com os custos e a natureza do serviço prestado em troca, com o que quedam violados o princípio da proporcionalidade e o princípio da proibição dos excessos (cfr.nº 2 do art. 266º da Constituição) – (...)".

A impugnante fez juntar ao processo dois pareceres jurídicos.

O Tribunal referido, após revogação, pelo Supremo Tribunal Administrativo (acórdão de fls. 259) da sentença de fls. 194, pela qual se julgara incompetente, veio a julgar procedente a impugnação, por sentença de 27 de Fevereiro de 2000 (fls. 352 e segs.), através da qual anulou a liquidação dos emolumentos notariais na parte impugnada e ordenou a restituição da quantia paga acrescida dos correspondentes juros legais.

A decisão assentou na consideração do "acréscimo de emolumento sobre actos de valor determinado", previsto no art. 5º da Tabela de Emolumentos Notariais, com a redacção do Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Fevereiro, como uma "receita pública de natureza fiscal, sujeita ao princípio da legalidade estabelecido no artº 106º, nº 1, al. i) e nº 2, e art. 168º da C.R.P. [sic], pelo que apenas poderia ser criada por lei da Assembleia da República ou pelo Governo no uso da competente autorização legislativa emanada daquela assembleia".

2. - Desta sentença interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por recusa de "aplicação do artº 5 da Tabela de Emolumentos Notariais, redacção do DL 397/83, de 2/11, com fundamento em violação dos artºs 106º nºs 1 i) e 2 e 168º da CRP."[sic].

Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações.

O Ministério Público concluiu do seguinte modo:

"1º A Directiva 69/335/CEE – e a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre a interpretação das normas que a integram – está exclusivamente coligada ao tema da liberdade de circulação de capitais no espaço comunitário, não tendo qualquer ligação com as taxas devidas pela realização de actos notariais que consubstanciam alienação por particulares de imóveis sitos em Portugal.

2º Os emolumentos notariais devidos pela realização dos serviços notariais de uma tarefa de administração pública do direito privado têm, de um ponto de vista estrutural, carácter inquestionavelmente bilateral ou sinalagmático, já que traduzem a prestação de um serviço aos utentes, consubstanciado na fé pública e segurança associada à outorga em escritura notarial de compra e venda de imóveis.

3º O carácter bilateral da taxa não implica uma estrita correspondência económica entre o valor da prestação imposta ao particular e o custo do serviço que constitui contraprestação do ente público – podendo, porém, no caso de ocorrer "desproporção intolerável" entre ambos, resultar violado o direito fundamental que, porventura, seja actuado ou realizado mediante a prestação do serviço público em causa.

4º O carácter bilateral da taxa não impede que no seu montante possam ser repercutidos os custos globais de instalação e funcionamento dos serviços que visam a administração pública do direito privado, fazendo partilhar pelos utentes (e não pela generalidade dos contribuintes) tais custos globais, em função da relevância económica dos actos que praticam.

5º Na específica situação dos autos, não constitui "desproporção intolerável" a liquidação de emolumentos notariais no valor de cerca de 10 mil contos, quando está em causa a celebração de uma escritura, envolvendo negócio jurídico complexo, por traduzir alienação de numerosas fracções, no valor global de cerca de 3.160.000.000$00 de escudos.

6º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida".

Por seu turno, a recorrida, nas contra-alegações, formulou as seguintes conclusões:

"1º A fixação do montante dos emolumentos deverá obedecer a uma justa proporção ou a um justo equilíbrio entre a prestação do particular e a contra-prestação de natureza pública fornecida;

2º A pretexto de uma relação bilateral, o Estado não pode cobrar receitas calculadas de acordo com os critérios próprios que presidem à quantificação das receitas unilaterais.

3º A justificação para a cobrança de quantias tão díspares a título de emolumentos por ocasião da celebração de uma escritura pública como a dos presentes autos, de acordo com o disposto no artº 5º da "Tabela dos Emolumentos do Notariado", com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 397/83, reside na circunstância de o legislador ter erigido como critério para o pagamento do serviço prestado pelos notários a capacidade contributiva dos interessados, capacidade essa que é medida através de um índice revelado: o valor dos imóveis negociados;

4º As receitas públicas calculadas desta forma, de acordo com os critérios próprios de uma receita unilateral, devem ser abrangidos pelo princípio da legalidade tributária, previsto nos arts. 106º, nº 2 e 167º, nº 1, al. i), da Lei Constitucional nº 1/92 (aos quais correspondem, actualmente, os arts. 103º, nº 2, e 165º, nº 1 al.i);

5º A utilização do método ad valorem para a fixação do montante de uma receita pública é exclusiva dos impostos (nomeadamente, dos impostos indirectos) e não poderá, em caso algum, ser aplicada às taxas dado que o quantitativo destas não pode andar ligado ao valor dos bens;

6º A fixação da taxa de justiça obedece a uma lógica de redução da procura que não pode ser transposta para a fixação dos emolumentos cobrados pelos notários a título de serviço público que estes prestam;

7º Nos serviços do notariado, ao contrário do que se passa com o serviço da administração da justiça, não interessa ao Estado limitar a procura, dado que o recurso a estes serviços é obrigatório, importa sim, fixar taxas que assegurem as receitas suficientes para cobrir os custos do serviço;

8º O negócio jurídico em causa nos presentes autos é idêntico aos demais contratos de constituição de propriedade horizontal e compra e venda de imóveis outorgados por outras escrituras de públicas e a prestação do notário é idêntica em todos eles: certificação de forma legal e de fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais;

9º Verifica-se uma desproporção intolerável entre a prestação da recorrida e a contra-prestação fornecida pelo ente público, pois pelo mesmo serviço os cidadãos pagam montantes bastante diversos, consoante o valor dos prédios negociados;

10º A A, pagou pelo serviço público a que recorreu um montante a título de emolumentos notariais bastante mais elevado do que teria de pagar um particular que recorresse ao mesmo serviço público mas adquirisse os imóveis por um valor diferente;

11º A desproporção entre o tributo cobrado e o serviço prestado é tal que se pode afirmar que aquele se desligou completamente deste último, tornando-se, assim, uma receita abstracta;

12º O...

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