Acórdão nº 368/02 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Setembro de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Artur Maurício
Data da Resolução25 de Setembro de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 368/02

Proc. nº 577/98

TC – Plenário

Relator: Consº. Artur Maurício

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:

1 – Relatório

O Procurador-Geral da República requer, com a legitimidade que lhe confere o artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2 da Constituição da República Portuguesa, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 13º, nº 2, alínea e), 16º, 17º, 18º e 19º do Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 7/95, de 29 de Março.

Alega o requerente como fundamento do seu pedido, em síntese:

- O regime estabelecido pelo citado Decreto-Lei nº 26/94 não foi, devendo sê-lo, credenciado por autorização parlamentar.

Com efeito, aquele regime:

a) Instituiu "relevantes restrições ao núcleo essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada que como é inquestionável abrange as informações e elementos atinentes ao estado de saúde de quem pretende ser ou é trabalhador de certas empresas";

b) Criou "um mecanismo "coercivo" que permite submeter tais trabalhadores à realização de quaisquer exames ou testes (cfr. artigo 16º, nº 3) que o médico de trabalho discricionariamente julgue necessários (artigo 19º, nº 1, alíneas b) e c)";

c) Permitiu "ao referido "médico do trabalho" (que se insere em serviços pertencentes ou contratados pela própria empresa empregadora) a criação de uma verdadeira "base de dados" que inclui informações virtualmente exaustivas sobre o "estado de saúde" de cada trabalhador sem outro controlo ou fiscalização que não seja a genérica proclamação de que tais dados estão sujeitos ao sigilo profissional (artigo 17º, nºs 1 e 2), prevendo-se ainda a instituição de um regime de colaboração "necessária" com o médico assistente do trabalhador, ao abrigo do qual parece ser possível obter deste inquisitoriamente os resultados de anteriores exames ou consultas";

d) Permitiu "ao médico do trabalho, com base no juízo de aptidão "sanitária" que formule, influenciar decisivamente a situação profissional do trabalhador, sem que se preveja e configure qualquer garantia adequada a questionar tal juízo do aludido "médico do trabalho" (artigo 18º, nº 1)".

- As normas que criaram este regime "padecem, pois, desde logo, de evidente inconstitucionalidade orgânica, por violação do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea b) – actual artigo 165º, nº 1, alínea b) – em conexão com o artigo 26º da Constituição da República Portuguesa que consagra como direito fundamental a reserva da intimidade da vida privada".

- As "alterações parcelares e pontuais" que a Lei nº 7/95, por ratificação do Decreto-Lei nº 26/94, introduziu nos questionados artigos 16º, nºs 1, 2 e 3, 17º, nº 3 e 18º, nº 1 "não são susceptíveis de operar a convalidação ou sanação da evidente inconstitucionalidade orgânica do bloco normativo atrás especificado".

Na verdade, segundo o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira ("Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição, pág. 698) "no caso de serem aprovadas alterações, esse facto não significa que a Assembleia da República adopte como seu o diploma na parte não alterada, salvo se ele for globalmente renovado e reproduzido na lei de alteração. As normas de um decreto-lei eventualmente inconstitucional por incompetência só deixam de o ser se e a partir do momento em que forem reassumidas em lei parlamentar".

"Ora, atendendo ao carácter fragmentário e, aliás, pouco significativo, das alterações introduzidas, é evidente que não estão, de nenhum modo convalidadas as gravosas inconstitucionalidades constantes dos preceitos citados do Decreto-Lei nº 26/94".

Para tanto, basta ponderar que a Lei nº 7/95 deixou incólumes as normas dos artigos 17º, nºs 1 e 2, 16º, nº 5 e 19º, "que constituem traves mestras do regime instituído".

Entende, ainda o requerente que, tanto o Decreto-Lei nº 26/94 como a Lei nº 7/95, padecem de "evidente inconstitucionalidade formal"; isto porque "de nenhum destes diplomas resulta que, com referência, à edição das normas de "legislação do trabalho" que inquestionavelmente os integram, haja sido respeitado o direito das comissões de trabalhadores e das associações sindicais de – nos termos dos artigos 54º, nº 5, alínea d) e 56º, nº 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa – participarem na elaboração da legislação do trabalho; e sendo certo que tal omissão de expressa indicação do cumprimento de tal formalidade essencial do processo legislativo determina, como resulta da jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, a presunção de que tal audição não teve lugar".

Com efeito, "da Lei nº 7/95 não resulta qualquer indicação ou referência sobre tal audição – sendo evidente que a introdução de "alterações" ao regime da segurança, saúde e higiene do trabalho implicava o facultar às associações sindicais o referido direito de participação".

Também "do preâmbulo do Decreto-Lei nº 26/94 apenas resulta que "o presente diploma foi apreciado na Comissão Permanente de Concertação Social, integrando a actual redacção os consensos ali alcançados", o que, conforme o decidido no Acórdão nº 64/91 do Tribunal Constitucional, "não supre, só por si, a necessária e prévia audição das organizações de trabalhadores sobre as medidas a decretar, já que as comissões de trabalhadores não têm qualquer ligação às entidades representadas no Conselho, tal como nele poderão não estar representadas certas e determinadas associações sindicais que cumpria ouvir".

- Algumas das soluções constantes dos preceitos referidos padecem, ainda, segundo o requerente, de "evidente inconstitucionalidade material".

É, desde logo, o caso da criação para os trabalhadores de "um dever irrestrito de revelação do seu estado global de saúde e de sujeição à realização de quaisquer exames clínicos que o "médico de trabalho" entender necessários", o que "implica clara, desproporcionada e intolerável restrição a um dos elementos que integram o núcleo essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada – e que abarca naturalmente as informações atinentes ao "estado de saúde" do interessado".

Tal sucede porque "o sistema instituído não se limitou a prever a realização de certos e determinados exames clínicos, destinados a apurar o "estado de saúde" de trabalhadores que pretendam exercer ou exerçam já actividades particularmente arriscadas ou exigentes – quer na perspectiva dos interesses do próprio trabalhador, quer da tutela de terceiros, eventualmente afectados: não se limitou a prever a averiguação e indagação médicas relativamente a certas e determinadas situações patológicas objectivamente conexionadas com certos riscos profissionais típicos e relativamente a certas profissões ou funções "de risco" para o próprio trabalhador"; "foi mais longe, instituindo um sistema de indagação inquisitória e "coerciva" (cfr. artigo 19º), do estado global de saúde de todos os trabalhadores, criando um dever, potencialmente ilimitado, de sujeição à realização de testes ou exames médicos e levando à devassa sistemática do estado de saúde" dos trabalhadores ao ponto de pretender quebrar a própria confidencialidade de dados à guarda do médico assistente, ao instituir a "cooperação necessária" deste naquela sistemática e global devassa da reserva da vida privada pelo "médico de trabalho"".

Tal "importa violação da norma constante dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, já que a devassa sistemática ao estado de saúde dos trabalhadores, ao exceder nomeadamente o âmbito das "profissões de risco" e das patologias estritamente profissionais, implica restrição excessiva e desproporcionada ao direito fundamental conferido pelo artigo 26º da Constituição da República Portuguesa".

- O sistema instituído vai, por outro lado, "originar a criação, em cada empresa, de um verdadeiro "banco de dados" que engloba informações extremamente precisas e vastas relativamente ao estado global de saúde de cada trabalhador – sem que se preveja outra garantia que não seja a mera proclamação da "confidencialidade" de tais dados", sendo certo que "o médico de trabalho (...) é, afinal, alguém que está inserido nos serviços internos da própria empresa ou em organismo por ela contratado sem que obviamente tenha sido reconhecido qualquer direito dos trabalhadores a escolha do médico a cujas inspecções devem obrigatoriamente submeter-se".

Ora – prossegue o requerente – "mesmo admitindo que as "fichas clínicas que integram o aludido banco de dados pessoalíssimos não irão ser objecto de tratamento informatizado – o artigo 35º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual, prescreve que "os dados pessoais" constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números 1 a 6 daquele preceito constitucional", sendo certo que essa protecção "não está minimamente garantida pelos diplomas legais em causa".

- Por último, alega o requerente que "o sistema instituído poderá ainda implicar restrição intolerável e desproporcionada ao direito ao trabalho e ao direito fundamental à escolha e exercício da profissão, previsto no artigo 47º da Lei Fundamental".

Isto porque "os resultados dos exames e testes clínicos (...) são discricionariamente apreciados pelo referido "médico de trabalho", podendo conduzir a uma verdadeira "inibição" do exercício da profissão, sempre que aquele considere na "ficha de aptidão" a que alude o nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 26/94 que o trabalhador carece de aptidão física e psíquica para iniciar ou continuar a exercer certas funções profissionais", sucedendo que "relativamente a tal decisão que não pode sequer ser fundamentada, por a tal se opor o dever de sigilo que vincula o aludido médico do trabalho não institui a lei qualquer mecanismo específico que permita ao trabalhador que pretenda, porventura, reagir a tal "conclusão" discricionária fazer valer, com celeridade e efectividade, os seus direitos...

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