Acórdão nº 509/02 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Dezembro de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Luís Nunes de Almeida
Data da Resolução19 de Dezembro de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 509/02

Proc. nº 768/02

Plenário

Rel.: Cons.º Luís Nunes de Almeida

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. O Presidente da República requereu, nos termos do artigo 278°, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51°, nº 1, e 57°, nº 1, da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 4°, nº 1, do Decreto da Assembleia da República nº 18/IX, recebido na Presidência da República, no passado dia 22 de Novembro de 2002, para ser promulgado como lei.

2. Alega, em síntese, o requerente:

- o diploma procede à revogação do rendimento mínimo garantido previsto na Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, e cria o rendimento social de inserção, podendo, grosso modo, dizer-se que os direitos e prestações previstos na legislação que instituía e regulamentava o rendimento mínimo garantido são substituídos, com as devidas adaptações, pelos direitos e prestações previstos na legislação que cria e, posteriormente, virá a regulamentar, o rendimento social de inserção

- a dúvida de constitucionalidade refere-se ao artigo 4°, nº 1, que regula a titularidade do direito ao rendimento social de inserção, na medida em que, enquanto que o artigo 4°, nº 1, da Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, que criou o rendimento mínimo garantido, reconhecia a titularidade do direito à prestação de rendimento mínimo aos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, o diploma que agora se pretende seja promulgado como lei, com ressalva das excepções também já previstas na lei anterior e das posições subjectivas dos actuais beneficiários, garante a titularidade do direito ao rendimento social de inserção apenas às pessoas com idade igual ou superior a 25 anos

- a dúvida de constitucionalidade respeita, assim, a saber se uma tal restrição objectiva da titularidade do direito em causa é constitucionalmente fundada e se é feita com observância das normas e princípios constitucionais

- e isto, tanto mais quanto, tendo a Lei nº 50/88, de 19 de Abril, e legislação complementar, que regulava o subsídio de inserção de jovens na vida activa, sido revogada pela legislação instituidora do rendimento mínimo garantido, e não sendo repristinada pelo actual Decreto nº 18/IX da Assembleia da República nem substituída por qualquer compensação afim, se verificaria neste domínio, se este diploma entrasse em vigor nos seus presentes termos, uma desprotecção objectiva da generalidade das pessoas de idade inferior a 25 anos, constituindo, objectivamente, para essa faixa etária, uma regressão na protecção social correspondente aos tempos anteriores a 1988

- aliás, a legislação que visa assegurar um rendimento mínimo garantido ou um rendimento social de inserção constitui uma concretização do direito de todos à segurança social (artigo 63°, nº 1, da CRP), correspondendo, mais especificamente, à obrigação derivada de o Estado organizar um sistema de segurança social em ordem a proteger «os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho» (artigo 63°, nº 3, da CRP)

- assim, os direitos ou pretensões subjectivas e os conteúdos objectivos decorrentes daquela legislação constituem, nesse sentido, uma manifestação juridicamente sustentada de direitos derivados a prestações que, sendo, embora, formalmente reconhecidos em legislação ordinária, são indissociáveis e beneficiam da força jurídica e dos efeitos irradiantes reconhecidos aos direitos fundamentais económicos, sociais ou culturais constitucionalmente consagrados

- nesse sentido, sem perda do poder de conformação autónomo reconhecido ao legislador em Estado de direito democrático, a partir e à medida que, de acordo com as suas disponibilidades financeiras, o Estado vai realizando esses direitos sociais e dando cumprimento às imposições constitucionais e deveres de prestação que deles decorrem, deixa de dispor livre e arbitrariamente do grau e medida entretanto realizados desses direitos

- mesmo quando - atendendo à natureza sob reserva do possível ou do financeiramente possível que os direitos sociais apresentam - não se sustente, como fazem, todavia, alguns Autores, a existência de um princípio constitucional de proibição do retrocesso nas prestações entretanto reconhecidas no domínio dos direitos sociais, é opinião doutrinária e jurisprudencialmente comum que o Estado só pode afectar o conteúdo realizado dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados quando se sustente numa comprovada incapacidade material, designadamente financeira, para manter a medida entretanto reconhecida de realização daqueles direitos ou quando a tal se veja compelido por força da necessária realização de outros valores de natureza constitucional

- na medida em que se lida com direitos fundamentais – e, enquanto tal, furtados à disponibilidade do poder político –, quando pretende retroceder no grau de realização entretanto atingido, e porque de verdadeiras restrições a direitos fundamentais se trata, o Estado não pode bastar-se, para fundamentar a afectação ou restrição do conteúdo dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados, com razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados ou com justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião política próprias da variação conjuntural das maiorias de governo

- e, mesmo quando se sustente numa justificação objectivamente comprovável e de base constitucional, o Estado não pode afectar ou suprimir prestações existentes de uma forma arbitrária, discriminatória, com eventual violação de princípios constitucionalmente consagrados como sejam o princípio da confiança próprio do Estado de Direito ou, mais especificamente, no caso, o princípio da igualdade ou o princípio da universalidade na titularidade e exercício dos direitos fundamentais

- a dúvida de constitucionalidade que se suscita é se, quando reconverteu, de uma forma geral, o anterior rendimento mínimo garantido em rendimento social de inserção, o legislador podia ter privado, genericamente, as pessoas de idade inferior a 25 anos da titularidade dos direitos que lhe era anteriormente reconhecida ou atribuída, sem que se vislumbre uma justificação, constitucionalmente apoiada, para proceder a tal discriminação relativamente às pessoas maiores de 25 anos

- poderia, eventualmente, sustentar-se que a restrição agora operada seria compensada por medidas substitutivas aplicáveis a essa faixa etária, mas, na inexistência, ainda que temporária, dessas medidas, não se vê como justificar a entrada imediata em vigor das alterações restritivas agora adoptadas.

- nem, por outro lado, o facto de os actuais beneficiários manterem, transitoriamente, o direito às prestações, responde às dúvidas de constitucionalidade, na medida em que há sempre pessoas que, nos termos da legislação actualmente em vigor, acederiam àquelas prestações e que se veriam, agora, objectivamente impossibilitadas de o fazer

- não estando em causa, pelo valor quantitativa e relativamente insignificante dos montantes em causa, uma incapacidade financeira de manutenção do direito às prestações, nem se apresentando qualquer valor de natureza constitucional justificador da restrição, a alteração legislativa em causa pode surgir como constitucionalmente injustificada e, enquanto tal, violadora do direito de todos à segurança social e da obrigação estatal de prover nas situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho do artigo 63°, nºs 1 e 3, da CRP

- por outro lado, na medida em que discrimina, sem fundamento razoável para o fazer, entre pessoas maiores ou menores de 25 anos, o legislador pode estar a violar o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13° da CRP, bem como, na medida em que, sem fundamento constitucional, priva uma parte das pessoas de direitos e prestações anteriormente concedidos, estará a violar o princípio da universalidade genericamente consagrado no artigo 12°, nº 1, da CRP e, mais especificamente, no que ao direito à segurança social se refere, no artigo 63°, nº 1.

Conclui o requerente, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma em causa, por eventual violação do artigo 63°, nºs 1 e 3, bem como dos artigos 12°, nº 1, e 13°, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

3. Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para o efeito do preceituado nos artigos 54º e 55º da LTC, limitou-se o mesmo a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os Diários da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em apreciação.

II – Fundamentação

  1. Enquadramento historico-jurídico

    4. A norma questionada, que se inscreve num diploma que cria o rendimento social de inserção e revoga o rendimento mínimo garantido, previsto na Lei nº 19-A/96, é do seguinte teor:

    Artigo 4°

    Titularidade

    1 - São titulares do direito ao rendimento social de inserção as pessoas com idade igual ou superior a 25 anos e em relação às quais se verifiquem os requisitos e as condições estabelecidos na presente lei.

    Todavia, com relevância para a dilucidação da questão a resolver se apresentam outros preceitos do diploma em apreço:

    Artigo 1°

    Objecto

    A presente lei institui o rendimento social de inserção, que consiste numa prestação incluída no subsistema de protecção social de cidadania e num programa de inserção, de modo a conferir às pessoas e aos seus agregados familiares apoios adaptados à sua situação pessoal, que contribuam para a satisfação das suas necessidades essenciais e que favoreçam a progressiva inserção laboral, social e comunitária.

    Artigo 2°

    Prestação

    A prestação do rendimento social de inserção assume natureza pecuniária e possui carácter...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
8 temas prácticos
  • Acórdão nº 3928/18.8T8VCT-B.G2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 16 de Dezembro de 2021
    • Portugal
    • 16 de dezembro de 2021
    ...2.º e 63.º, ambos da CRP; e tem sido reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (v.g. Ac. do TC n.º 62/2002, ou Ac. do TC n.º 509/2002). Esta protecção à criança (em particular, no que toca ao direito a alimentos), tem merecido também especial consagração em instrumentos vincu......
  • Acórdão nº 47/06 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Janeiro de 2006
    • Portugal
    • 17 de janeiro de 2006
    ...pode apreciar em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade (artigo 280º da CRP). Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 509/02 (Diário da República, I Série, de 12 de Fevereiro de 2003), a propósito da “necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização ......
  • Acórdão nº 10023/2004-6 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 19 de Maio de 2005
    • Portugal
    • 19 de maio de 2005
    ...195/03 e 88/04, acima citado, publicada na Jurisprudência Constitucional, nº 3, Julho/Setembro de 2004. -Viera de Andrade, Anotação ao Ac. TC nº 509/02, jurisprudência Constitucional nº 1, p.22 e 23, citado por Rita Lobo Xavier, na Anotação...
  • Acórdão nº 141/15 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Fevereiro de 2015
    • Portugal
    • 25 de fevereiro de 2015
    ...em função do respeito devido ao princípio da igualdade de tratamento» (cfr. Vieira de Andrade, Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/02, in Jurisprudência Constitucional, n.º 1, JAN/MAR, 2004, pág. 26). Chegado o Tribunal a um juízo de inconstitucionalidade, prejudicada fic......
  • Peça sua avaliação para resultados completos
8 sentencias
  • Acórdão nº 3928/18.8T8VCT-B.G2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 16 de Dezembro de 2021
    • Portugal
    • 16 de dezembro de 2021
    ...2.º e 63.º, ambos da CRP; e tem sido reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (v.g. Ac. do TC n.º 62/2002, ou Ac. do TC n.º 509/2002). Esta protecção à criança (em particular, no que toca ao direito a alimentos), tem merecido também especial consagração em instrumentos vincu......
  • Acórdão nº 47/06 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Janeiro de 2006
    • Portugal
    • 17 de janeiro de 2006
    ...pode apreciar em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade (artigo 280º da CRP). Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 509/02 (Diário da República, I Série, de 12 de Fevereiro de 2003), a propósito da “necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização ......
  • Acórdão nº 10023/2004-6 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 19 de Maio de 2005
    • Portugal
    • 19 de maio de 2005
    ...195/03 e 88/04, acima citado, publicada na Jurisprudência Constitucional, nº 3, Julho/Setembro de 2004. -Viera de Andrade, Anotação ao Ac. TC nº 509/02, jurisprudência Constitucional nº 1, p.22 e 23, citado por Rita Lobo Xavier, na Anotação...
  • Acórdão nº 141/15 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Fevereiro de 2015
    • Portugal
    • 25 de fevereiro de 2015
    ...em função do respeito devido ao princípio da igualdade de tratamento» (cfr. Vieira de Andrade, Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/02, in Jurisprudência Constitucional, n.º 1, JAN/MAR, 2004, pág. 26). Chegado o Tribunal a um juízo de inconstitucionalidade, prejudicada fic......
  • Peça sua avaliação para resultados completos

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT