Acórdão nº 663/98 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Novembro de 1998

Magistrado ResponsávelCons. Sousa Brito
Data da Resolução25 de Novembro de 1998
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão nº 663/98

Proc.nº 235/98

  1. Secção

Relator: Cons.Sousa e Brito

Acordam no Tribunal Constitucional :

I

Relatório

1. Nos autos de instrução criminal em que é arguido J. C. e que correm no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, foi proferida decisão que recusou a aplicação do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro - que alterou o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que define o regime jurídico do cheque sem provisão - com fundamento na inconstitucionalidade material do mesmo Decreto-Lei e que ordenou, por isso, o arquivamento dos autos, no entendimento de que o regime anterior - isto é, o do Decreto-Lei nº 454/91 sem a alteração - foi revogado. Desta decisão interpôs recurso obrigatório o Ministério Público no mesmo Tribunal, ao abrigo do artigo 280º, nº 1 alínea a) e nº 3 da Constituição e do artigo 70º, nº 1 alínea a) e 72º nº 3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.

2. Do exame dos autos resulta que :

- o arguido foi acusado dos crimes do artigo 11º, nº 1, alínea c) do Decreto-Lei nº 454/91 ("proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue") e do artigo 313º, nº 1 do Código Penal de 1982 (burla);

- o arguido requereu a abertura da instrução, afirmando: que os três cheques a que se refere a queixa e que estão datados de 5 de Novembro de 1993 foram entregues sem data em 1992, como caução da mercadoria, e pós-datados pelo tomador; que entregara igualmente ao tomador letras em garantia do pagamento; que posteriormente pretendeu devolver a mercadoria mediante a devolução dos cheques; que não houvera, por isso, intenção enganosa nem prejuízo, sem, contudo, negar a proibição de pagamento ao banco sacado;

- a decisão recorrida foi proferida a 6 de Fevereiro de 1998, antes de terminada a instrução, "aderindo inteiramente às razões enunciadas" no "acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 819, de 20 de Janeiro de 1998, ainda não transitado nem publicado", e como aplicação da decisão mais geral "de não aplicar o Decreto-Lei nº 316/97 aos processos pendentes de emissão de cheque sem provisão", nos termos do disposto no artigo 204º, nº 3 da Constituição, porque tal Decreto-Lei seria "violador dos artigos 8º, nº 1 e 27º, nºs 1 e 2 da Constituição".

3. As razões invocadas para esta decisão são as seguintes :

"Configura o legislador no novo regime, uma relação de índole eminentemente civilística, em que, contrariamente ao que acontece no âmbito do direito civil onde as partes contratantes estão em pé de igualdade, o devedor, o emitente do cheque é coagido a cumprir a sua obrigação pela intervenção de um terceiro - o banco - entidade, no fundo, estranha à relação legitimadora da emissão do cheque, sob pena de lhe serem aplicadas as sanções estabelecidas na lei.

A propósito deste novo Decreto-Lei nº 316/97, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 819, datado de 20 de Janeiro, de 1998, ainda não transitado nem publicado, que aquele é insusceptível de ser aplicado pelos Tribunais, por enfermar de inconstitucionalidade material, concluindo pela descriminalização do tipo legal, emissão de cheque sem provisão.

Refere-se naquele Acórdão que não obstante a terminologia utilizada pelo Decreto-Lei em análise, a realidade a que nele se chama crime de emissão de cheque sem provisão, mais não é do que uma autêntica prisão por dívidas, destinada a sancionar criminalmente a falta de cumprimento de uma obrigação pecuniária dentro de um prazo de moratória legal concedido ao devedor.

Ora a prisão por dívidas, como decorre da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, é inadmissível na ordem jurídica portuguesa".

A decisão de não aplicar o regime do Decreto-Lei nº 316/97 foi assim fundamentada :

" Refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, a este respeito que, "a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não determina a repristinação automática da norma por ela revogada, especialmente quando aquela vem declaradamente, proceder à substituição de um regime (...) por outro, considerado mais perfeito e mais adequado à realidade jurídica e social do país." Conclui-se ali que "não se pode dizer que o reconhecimento da apontada inconstitucionalidade possa conduzir à manutenção do regime punitivo anterior, constante da norma que a lei nova veio substituir."

Assim, por estar ferido da apontada inconstitucionalidade, recusamos a aplicação do DL 316/97.

Porque o anterior regime foi revogado, não há punição legal para crime de emissão de cheque sem provisão".

4. Em face da não indicação na decisão recorrida das normas que se pretendem violadas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da integral remissão para o acórdão nº 819, de 20 de Janeiro de 1998, do Supremo Tribunal de Justiça, convirá transcrever as passagens decisivas da argumentação de tal acórdão (entretanto publicado em Actualidade Jurídica, I, nº 10, pp.8-10) :

"[...] o mencionado Decreto-Lei nº 454/91 foi objecto de uma revisão, operada pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, e entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1998, e, por ela, embora se continue a prever como crime de emissão de cheque sem provisão a proibição, à instituição sacada, de pagamento de um cheque entregue pelo próprio ou por terceiro (alínea b) do artigo 11º, na nova redacção), devemos concluir pela inconsti-tucionalidade actual dessa previsão criminal, como se passa a demonstrar.

[...] O novo regime instituído pela alteração ao Decreto-Lei nº 454/91, no entanto, eliminou por completo toda e qualquer vertente relacionada com o cheque como meio de pagamento abstracto, como moeda privada emitida por particulares, pois passou a exigir que, na queixa crime, essencial para que haja procedimento, ou, eventualmente, um pouco mais tarde, se façam constar os dados respeitantes à relação jurídica subjacente (artigo 11-A nºs 2 e 3), e se criou um esquema coercivo civilístico, destinado a forçar o pagamento, pelo devedor, da importância do cheque que não tenha provisão, num determinado prazo contado de notificação obrigatória do seu emitente pela entidade bancária sacada, com a consequência da possibilidade da aplicação de uma pena especialmente atenuada se o pagamento ocorrer depois desse prazo mas até ao início da audiência de julgamento em primeira instância (artigos 1º-A, e 11 nºs 5 e 6), ao mesmo tempo que se despenaliza expressamente a situação que se traduza na emissão de um cheque sem provisão pré-datado (ou, segundo outra terminologia que não parece ser a mais correcta, um cheque "pós-datado"), isto é de um cheque emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador (artigo 11º, nº 3).

Ao mesmo tempo, o referido diploma vem considerar como criminosa (crime de emissão de cheque sem provisão) a conduta de quem endossar um cheque que tenha recebido e que tenha conhecimento das causas de não pagamento integral que fazem com que o acto praticado pelo sacador possa ser qualificado como ilícito penal (artigo 11º, nº 1, alínea c).

Dito de forma mais explícita, para a nova versão do diploma em causa, o legislador só considera como susceptível de sujeição à lei penal a emissão e entrega dum cheque que se destine ao pagamento de uma dívida actual, baseada num negócio jurídico, de cujos termos e cláusulas deve ser dada o conhecimento ao Tribunal, com a queixa, ou posteriormente, mas sempre antes da efectivação de diligências de apuramento dos factos.

Nesta medida, e não obstante a terminologia utilizada pelo Decreto-Lei em análise, a realidade a que nele se chama de "crime de emissão de cheque sem provisão" mais não é do que uma autêntica "prisão por dívidas", destinada a sancionar criminalmente a falta de cumprimento de uma obrigação pecuniária dentro de um prazo de moratória legal concedido ao devedor.

Mas, como prisão por dívida, corresponde a um instituto que, tradicionalmente, e como o Tribunal Constitucional já frisou a propósito da antiga conversão em prisão da falta de pagamento do imposto de justiça devido pelo arguido condenado, é vedado pela Constituição, por se traduzir numa privação da liberdade baseada num facto repudiado pelos princípios do direito internacional geral ocidental (cf. o artº 1º do Protocolo Adicional nº 4, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16.9.63).

Por isso, as disposições em causa são violadoras das normas do artigo 8º nº 1, e, por compreensão lógica, do artigo 27º nºs 1 e 2, da Constituição e, como tal, não podem ser aplicadas pelos Tribunais, nos termos do seu artigo 204º.

Como a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não determina a repristinação automática da norma por ela revogada, especialmente quando aquela vem, declaradamente, proceder à substituição de um regime regulador de um instituto por outro, considerado mais perfeito e mais adequado à realidade jurídica e social do País, não se pode dizer que o reconhecimento da apontada inconstitucionalidade possa conduzir à manutenção do regime punitivo anterior, constante da norma que a lei nova veio substituir.

Desta forma, e em harmonia com o exposto, e por força do preceito do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, recusam a aplicação do regime resultante da redacção do Decreto-Lei 454/91 operada pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, por enfermar da apontada inconstitucionalidade material, e consideram descriminalizado o crime de emissão de cheque sem provisão por cuja comissão o arguido foi condenado" [...].

5. Ao abrigo do disposto no artigo 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional foi determinado que o julgamento do presente recurso se faça com a intervenção do plenário.

O Procurador Geral Adjunto neste Tribunal alegou, tendo formulado as seguintes conclusões :

" 1º - O bem jurídico tutelado com a incriminação do cheque sem provisão continua a ser - mesmo após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro - a confiança na circulação do cheque, dada a sua função como meio de pagamento, a qual é afectada sempre que o emitente, com intuito enganoso e violando o princípio da boa fé...

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