Acórdão nº 591/07 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Dezembro de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução05 de Dezembro de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 591/2007Processon.º 965/072.ªSecção

Relator:Conselheiro Mário Torres

Acordam,em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. A.apresentou reclamação para aconferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º?A da Lei de Organização,Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13?A/98,de 26 de Fevereiro (LTC), contra a decisãosumária do relator, de 29 de Outubro de 2007, que, no uso da faculdadeconferida pelo n.º 1 desse preceito, negou provimento ao recurso interpostopelo recorrente, por não julgar inconstitucional a norma constante do artigo170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 deSetembro.

1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte fundamentação:

“1. A.interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lein.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13?A/98,de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça(STJ), de 5 de Setembro de 2007, que negou provimento ao recurso por eleinterposto contra o acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de VilaNova de Famalicão, de 9 de Janeiro de 2007, que o condenara, pela co?autoriade um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do CódigoPenal, na pena de dois anos de prisão.

Norequerimento de interposição de recurso, refere o recorrente:

«Inconstitucionalidadedo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, por ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedadedo direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, e previsto no artigo40.º, n.º 1, do Código Penal, quandointerpretado à letra prescindindo da exigência de prova de uma situação deexploração de necessidade económica ou de abandono, bem como por ofensa dosdireitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidadepessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão edireito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.°, n.º1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP.

O arguido recorrente suscitou nodecurso do processo a inconstitucionalidade da actual norma do artigo 170.º,n.º 1, do Código Penal, quando interpretada literalmente sem exigir para opreenchimento do tipo a verificação de uma situação de exploração de necessidadeeconómica ou de abandono das pessoas que se prostituem, carecendo, destarte,de ser interpretada restritivamente, de modo a conformar?se com aConstituição, no sentido de se exigir para o preenchimento do tipo averificação das sobreditas circunstâncias.

Na motivação de recurso interpostopara o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido alegou que, conforme já invocavana contestação, contrariamente ao doutamente explanado no acórdão proferidopelo Tribunal Colectivo, a actual norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal protege valores quenada têm que ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, que nãocabe ao Direito Penal proteger; sendo que as alterações derivadas do Decreto?Lein.º 48/95 eliminaram do tipo legal a exploração de situações de ‘abandono ou denecessidade económica’ das mulheres em causa, não se podendo, por isso,concluir, como resulta do aresto posto em crise, que ‘as situações de prostituiçãorelativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros sãosituações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída’.

Com a actual incriminação, o bemjurídico protegido não é a liberdade de expressão sexual da pessoa mas umacerta ideia de ‘defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não éencarada hoje como função do direito penal, o que justifica uma eventualdescriminalização, neste sentido Figueiredo Dias, citado por Anabela MirandaRodrigues, in Comentário Conimbricensedo Código Penal, tomo I, pág. 518, § 2.

A incriminação do lenocínio previstano artigo 170.º, n.º 1, protege bens jurídicos transpersonalistas de étimomoralista por via do direito penal, o que se tem hoje por ilegítimo. Nestaperspectiva, o crime de lenocínio do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal constituirá um crime semvítima, salientando?se aí que o bem jurídico protegido pela incriminação,já à luz do direito anterior – e que a versão actual do Código não faz senão reforçar– não é a liberdade sexual da pessoa, mas um bem jurídico transpessoal que nãocabe ao direito penal defender.

O tipo legal de crime introduzido non.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, com a revisão de 1998,protege bens jurídicos que não são eminentemente pessoais, ficando deste modoprevisto um tipo legal de crime que não se coaduna com a sistematização doCódigo Penal, uma vez que se encontra inserto no capitulo V – ‘dos crimes contra aliberdade e autodeterminação sexual’.

Na formulaçãode Anabela Miranda Rodrigues, inComentário Conimbricense do Código Penal,‘uma proposta coerente com o pressuposto de que se partiu – de só seconsiderar legítima a incriminação de condutas do foro sexual se e na medida emque atentem contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal – leva aque o direito penal só deva intervir em dois grupos de casos: quando está emcausa o desenvolvimento sexual dos menores ..., ou quando, em relação aadultos, se utilize a violência, ameaça grave, se provoque o erro ou seaproveite o seu estado de pessoa indefesa. Tudo o mais – a incriminação dolenocínio prevista no artigo 170.º, n.º 1– é proteger bens jurídicostranspersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que se temhoje por ilegítimo – aproximando?nos perigosamente de um direito penal de“fachada”’.

Acresce que a alteração verificadacom a sobredita revisão do Código Penal eleva à categoria de crimes condutasque se consubstanciam em simples comparticipação em actos lícitos e livres.

Pois, como parece decorrer da actualformulação do tipo do n.º 1 doartigo 170.º do Código Penal, fomentar,favorecer ou facilitar a prática por outrem da prostituição reconduz?se acomparticipação numa conduta alheia, desenvolvida livremente pela prostituta.Sendo, destarte, incriminado aquele que auxilia, favorece ou facilita outrem àprática do exercício de um direito próprio. Não servindo aqui o argumentoesgrimido no acórdão da primeira instância que existem outros casos em que aconduta não é incriminada e são incriminados os terceiros participantes, comosucede com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com aincriminação da divulgação de pornografia infantil (artigo 172.º, n.º 3,alínea e), do Código Penal), dadoque nestes casos os bens jurídicos protegidos são, no primeiro caso, a vidahumana, mais concretamente a vida de outra pessoa, à semelhança do que sucedecom o crime de homicídio a pedido da vítima, e, no segundo caso, dado que,atenta a pouca idade da vítima que por via disso não dispõe de liberdade sexualpositiva, protege?se assim a autodeterminação sexual, dado que talconduta típica prejudica, consequentemente, de modo grave o livredesenvolvimento da sua personalidade.

Assim, ao incriminar o fomento,favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre eautodeterminada, o n.º 1 do artigo 170.º ofende o princípio da fragmentariedadeou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP eprevisto no artigo 40.º, n.º 1, doCódigo Penal, bem como osdireitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidadepessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão edireito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e58.º, n.º 1, da CRP.

Direitos estes, de liberdade deescolha de profissão e direito ao trabalho, que não impedem sejam exercidos,como efectivamente o são, na prática, com auxílio e comparticipação deterceiros.

Encontrando?se, assim, aqueladisposição normativa (artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal)inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastadaatravés do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que repristine aexigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejampassíveis de o constituir quando reportando?se a pessoas ‘em situação deabandono ou de extrema necessidade económica’.

Pelo que o recorrente deveria serabsolvido do crime de lenocínio, seja pela declaração de inconstitucionalidadeou seja pela interpretação restritiva do preceito legal.

Não obstante o alegado, o SupremoTribunal de Justiça, no douto aresto ora recorrido, entendeu que a questãosobre a pretensa inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal já foi equacionada e decididapelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 144/2004, de 10 deMarço, processo n.º 566/2003, da 2.ª Secção, que considerou não serinconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de sertipicamente exigível a verificação de uma ‘situação de abandono ou de extremanecessidade económica’.

Afigura?se?nos, todavia,que, como assertivamente refere o Conselheiro Eduardo Maia Costa, no seu votode vencido, cujo fundamentação, por corresponder à única possível de forma acoadunar o tipo legal de crime com a Constituição, se tem aqui porintegralmente reproduzida, exaustivamente esgrime argumentos que implicam anecessária interpretação restritiva do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal,sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

Com efeito, como refere oConselheiro Eduardo Maia Costa, é semdúvida o Parecer de M. CostaAndrade e Maria João Antunes que analisa mais exaustivamente a questão agora emanálise, concluindo, a partir do conceito de bem jurídico nos crimes sexuais,pela violação frontal pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal do artigo 18.º,n.º 2, da CRP.

De acordo como referido pelo Conselheiro Eduardo Maia Costa, é notória a preocupação doTribunal Constitucional, nos acórdãos referidos no douto aresto do STJ, dejustificar a incriminação do...

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