Decisões Sumárias nº 362/06 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Julho de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução10 de Julho de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

DECISÃO SUMÁRIA N.º 362/06

Processo n.º 49/06

  1. Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

Decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional

  1. Relatório AUTONUM 1.A. e mulher B., impugnaram junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (I.R.S.), respeitante ao ano de 1999 e 2000 no valor de 6.769,35 €.

    Por sentença de 7 de Outubro de 2004 a impugnação julgada improcedente, nos seguintes termos:

    (…)

    1 – Violação do Direito Constitucional

    Entende o impugnante que as gratificações que recebeu se apresentam juridicamente como uma verdadeira doação que não tem subjacente qualquer relação laboral mas tão somente um espírito de liberalidade ou doação, razão pela qual estão subordinadas ao regime do n.º 1 do artigo 62.° da Constituição da República Portuguesa.

    As gratificações, sempre que atribuídas dentro das instalações onde o jogo é praticado, estão sujeitas a depósito em caixa própria, para posterior distribuição pelos beneficiários, segundo regras administrativamente fixadas. A gorjeta não é atribuída intuitu personae mas, por regra, é deixada em fichas, em cima da mesa de jogo, nada impedindo, aliás, que o frequentador gratifique pessoalmente quem deseje, desde que o faça fora das instalações de jogo. Os jogadores têm por prática habitual atribuir espontaneamente aos profissionais da banca – especialmente quando ganham – uma quantia em dinheiro, usualmente designada gratificação ou gorjeta.

    A distribuição dessas gorjetas não é igualitária, e, desde 1960, processa-se em função das respectivas categorias profissionais, tal como se encontram definidas no respectivo contrato colectivo de trabalho, de acordo com a ligação mais ou menos íntima das várias categorias dos trabalhadores “à sorte do jogo”.

    O legislador não deixando de proibir o recebimento de gratificações ou gorjetas a título individual, reconhece e disciplina o seu recebimento, nomeadamente quanto ao destino a dar a essas importâncias – o que, de resto, se prende com o problema da constitucionalidade das respectivas normas de distribuição – desse modo avalizando um regime particularmente específico em que os seus destinatários em parte usufruem da iniciativa dos jogadores, em parte delas beneficiam indirectamente, na medida dos quantitativos a reter para assegurar a liquidez do fundo de natureza social e assistencial que possuem.

    Alguns autores como Monteiro Fernandes consideram que por gratificações se podem abranger importâncias que, embora recebidas em razão de trabalho prestado à entidade patronal, sejam pagas por pessoa diferente desta, afastando a chamada “remuneração por percentagem sobre as vendas”, de que é exemplo a taxa de serviços, das gorjetas propriamente ditas, doações remuneratórias de terceiros (cfr. Lei do Contrato de Trabalho anotada, Coimbra, 1970, p. 199)].

    O legislador fiscal considerou as gorjetas como rendimentos de trabalho para efeitos de tributação. Nada o obrigava a fazer coincidir o conceito fiscal de rendimento do trabalho com o da legislação laboral, nem a fazer depender da existência de um título jurídico contratual ou um vínculo funcional relevante a qualificação de rendimento de uma quantia recebida por um trabalhador, no seu local de trabalho.

    “Quem as dá, (as gorjetas) dá-as por sua livre vontade, podendo os motivos para isso serem os mais variados possível. No caso concreto do jogo nos casinos, por exemplo, podemos admitir que as esportule aquele que foi feliz e em regozijo por isso; mas também as pode dar, ao invés, aquele que, perseguido pela pouca sorte, promete ali mesmo desistir e não voltar ao jogo.

    Mas o que parece inegável é que há, aqui, sempre um carácter de contrapartida a qualquer coisa que veio da parte daquele que foi contemplado com a gorjeta, muito embora os serviços que a originam, e no que se refere àquele que as dá, não constituam para ele fonte de quaisquer obrigações.”

    Na vigência do Código de Imposto Profissional cada categoria de rendimentos, ou cédula, era determinada em função da sua origem ou natureza e submetida a um imposto próprio, com regras específicas de determinação da matéria colectável.

    O legislador, procurando aperfeiçoar o critério de tributação dos rendimentos reais que, designadamente, passaram a poder ser ocasionais e nem provir directamente do trabalho, orientou a respectiva técnica tributária no sentido de sujeitar a imposto todos os ganhos ou proveitos dos contribuintes, mesmo os excepcionais ou representativos de vantagens em espécie, incluindo os rendimentos ocasionais.

    No domínio do Código do Imposto Profissional, a lei estabelecia a tributação das gratificações recebidas pelos empregados das salas de jogos dos casinos, como bem se refere na decisão do Supremo Tribunal Administrativo de que passa a transcrever-se o sumário:

    “I – A fórmula utilizada na alínea e) do § 2.º do art.º 1.° do Código do Imposto Profissional susceptível de abranger as gratificações atribuídas a quaisquer trabalhadores e não apenas aos das salas de jogos, não estando demonstrado que, na prática, apenas estes sejam tributados com base nesta norma.

    II – As eventuais dificuldades técnicas que possam existir na aplicação da lei a trabalhadores de determinadas categorias profissionais não justifica, por aplicação do princípio da igualdade, que mesma deixe de ser aplicada aos casos em que a sua aplicação é possível.

    III – Por força do disposto no art.º 28.° da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, o Governo estava autorizado a metade das importâncias recebidas pelos empregados por conta de outrem no exercício das sua actividades, ainda que não atribuídas pela sua entidade patronal, pelo que ao introduzir no § 2.° do art.º 1.° do Código do Imposto Profissional a referida alínea e), o Governo agiu dentro dos limites da autorização prevista naquela Lei.

    IV – Assim, ao legislar dessa forma, o Governo não violou os princípios constitucionais da legalidade da reserva de lei.

    V – Uma vez que se entenda que os rendimentos referidos cabem no âmbito de incidência do Imposto Profissional, tem de entender-se que haveria a consequente obrigação de apresentação da declaração de rendimentos.

    VI – O facto de, em regra, dever ser feita retenção na fonte do imposto profissional devido por trabalhadores por conta de outrem, não impede que possam englobar-se no âmbito de incidência do imposto nem que possa ser feita liquidação adicional quando o imposto não é autoliquidado.” (Ac. STA de 29 de Fevereiro de 2000, Relator: Dr. Jorge de Sousa)

    A Lei n.º 106/88, nos termos da alínea a) do n.º 2 do seu artigo 4.°, autorizou o Governo a legislar, no âmbito da incidência objectiva do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, de modo a serem consideradas como rendimentos de trabalho dependente “todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele equiparado”.

    Entende o impugnante ter sido desrespeitada a extensão da autorização, por não ter sido intuito do legislador tributar rendimentos que não decorrem directamente de contrato de trabalho, ou outro a ele legalmente equiparado, sendo certo que as liberalidades atribuídas por terceiros não têm directamente em vista o pagamento de certo trabalho.

    No Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares manteve o legislador o propósito anteriormente estabelecido para o imposto profissional de englobar, na incidência do imposto, todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho, seja directamente da entidade patronal para o trabalhador seja de um terceiro para o trabalhador.

    Neste enquadramento pouco importa se a gorjeta reveste ou não a natureza de doação, mormente remuneratória (de resto, o Código Civil diz-nos claramente, no n.º 2 do seu artigo 940.º, não haver doação nos donativos conformes aos usos sociais, como é o caso das gorjetas em questão).

    O sistema legal permite a determinação dos rendimentos auferidos e harmoniza-se com a teleologia do sistema fiscal, onde, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado, se contribui, do mesmo passo, para uma repartição igualitária dos rendimentos e da riqueza, prosseguida constitucionalmente, nos termos do n.º 1 do artigo 106.° da Constituição da República Portuguesa.

    O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares é um “imposto geral sobre o rendimento”, sendo as gorjetas subsumíveis aos rendimentos tipificados no artigo 1.° do respectivo Código, e, nessa medida, não pode considerar-se que a tributação desses rendimentos seja susceptível de ter ultrapassado os limites definidos na lei de autorização legislativa.

    “Os contornos da delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização têm sido objecto da jurisprudência deste Tribunal que os vem definindo numa linha discursiva segundo a qual o objecto da autorização constitui o elemento enunciador da matéria sobre que a autorização versa, a extensão especifica a amplitude das leis autorizadas e pelo sentido se fixam os princípios bases que hão-de orientar o Governo na elaboração destas últimas (cfr., v.g., os acórdãos n.ºs 70/92, 358/92 e 213/95).

    Cabendo, assim, à extensão da autorização especificar os aspectos da disciplina jurídica da matéria objecto do exercício dos poderes delegados, não se tem esta por desrespeitada pela iniciativa do Governo, nomeadamente por exorbitar o programa e o conjunto de directrizes proposto pela autorização legislativa” Ac. TC n.º 497/97.

    O Supremo Tribunal Administrativo já no domínio do Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares tem vindo a considerar que continuaram a ser tributadas as gratificações do tipo das discutidas nestes autos, na medida em que eram consideradas, para esse efeito, rendimentos do trabalho dependente.

    Seguindo, uma vez mais...

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