Acórdão nº 179/12 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Abril de 2012

Magistrado ResponsávelCons. José Cunha Barbosa
Data da Resolução04 de Abril de 2012
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 179/2012

Processo n.º 182/12

Plenário

Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. O Presidente da República veio requerer, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do nº 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), ao Tribunal Constitucional, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República:

      (…)

      - a norma constante do n.º 1 do artigo 1.º, na parte em que adita o artigo 335.º-A ao Código Penal;

      - a norma constante do n.º 2 do artigo 1.º, na parte em que altera o artigo 386.º do Código Penal;

      - a norma constante do artigo 2.º, na parte em que adita o artigo 27.º-A à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro;

      - a norma constante do artigo 10.º, quando conjugada com as normas anteriormente referidas.

      (…)

    2. Para tanto, mostram-se invocados os seguintes fundamentos:

      (…)

      1.º

      Pelo Decreto n.º 37/XII, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento ilícito.

      2.º

      Este novo tipo criminal é aditado ao Código Penal, na formulação adotada pelo Decreto, sendo aplicável a todas as pessoas, singulares e coletivas (artigo 335.º-A), embora com moldura penal agravada quando praticado por funcionário (artigo 386.º).

      3.º

      Semelhante tipo criminal é aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que aprovou o regime dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.

      4.º

      É a seguinte a formulação dada pelo Decreto ao n.º 1 do artigo 335.º-A do Código Penal: “Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

      5.º

      De modo semelhante, dispõe o artigo 386.º do Código Penal na redação dada pelo Decreto: “O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

      6.º

      Finalmente, de acordo com o Decreto, é a seguinte a redação do crime de enriquecimento ilícito aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho: “O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

      7.º

      Nos termos das normas citadas e, tal como resulta do debate havido no Parlamento que consta dos trabalhos preparatórios, são três os elementos objetivos do tipo legal de crime, comuns à definição do crime em apreciação: i) «adquirir, possuir ou deter património»; ii) «sem origem lícita determinada»; iii) «incompatível com os rendimentos e bens legítimos» do agente.

      8.º

      Estabelece o artigo 10.º do Decreto que “Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito”.

      9.º

      Coloca-se, assim, a questão de saber se estas normas conjugadas consubstanciam uma violação do princípio constitucional da presunção de inocência, decorrente do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º e com assento expresso no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.

      10.º

      Com efeito, a Constituição garante, no n.º 2 do artigo 32.º, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Este princípio encontra a sua origem histórica na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na sequência da Revolução Francesa. Veio a ser inscrito nos mais relevantes textos internacionais de proteção de direitos humanos, designadamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º 1 do artigo 11.º), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (n.º 2 do artigo 14.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 6.º).

      11.º

      Uma das decorrências deste princípio é, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 32.º da Constituição (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, pág. 518), de resto amplamente citada na jurisprudência do Tribunal Constitucional a este propósito (cfr., entre outros, o acórdão n.º 426/91) a proibição de inversão do ónus da prova.

      12.º

      Tal proibição traduz-se na necessidade de a acusação fazer prova dos factos que alega, necessários ao preenchimento do tipo legal de crime e dos seus elementos.

      13.º

      Traduz-se ainda no direito ao silêncio do arguido e a recusar-se colaborar na sua incriminação. Este direito encontra-se previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, sendo considerado um corolário do princípio da presunção de inocência e das garantias fundamentais do arguido em processo penal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95 e Maria Fernanda Palma, A constitucionalidade do artigo 342º do Código de Processo Penal (O direito ao silêncio do arguido), in Revista do Ministério Público, Ano 15º, Out./Dez. 1994, nº 60º, pág. 101 e segs.).

      14.º

      Sendo certo, como se viu, que o Decreto determina, nos termos gerais do Código de Processo Penal, que compete ao Ministério Público fazer a prova de todos os elementos do crime, importa apurar se a conjugação desta norma com a definição do tipo legal de crime comporta uma inversão do ónus da prova violadora do princípio constitucional da presunção de inocência.

      15.º

      São três, como acima mencionado, os elementos objetivos do tipo legal de crime. O Ministério Público deve, pois, nos termos do regime descrito, fazer prova da aquisição, posse ou detenção do património, de não ter esse património origem lícita determinada, bem como da sua incompatibilidade com os rendimentos e bens legítimos do arguido.

      16.º

      Resulta da conjugação dos citados preceitos que, para o preenchimento do tipo legal de crime, basta que o Ministério Público alegue que o enriquecimento não possui origem lícita determinada.

      17.º

      Sublinhe-se que a exigência de prova não se dirige à ilicitude da origem do património nem, tão-pouco, à licitude dessa origem.

      18.º

      Tal significa que, na circunstância de o Ministério Público não determinar a licitude da origem do património – por incapacidade de prova, insuficiência de factos, ou outra razão – o tipo legal deve ter-se por preenchido.

      19.º

      A única forma de o arguido garantir que a prova não se considera produzida é revelar, provando, a origem do património.

      20.º

      Contudo, uma tal exigência, admitindo que o arguido se encontra em condições de a cumprir, viola, por si só, o princípio da presunção de inocência na sua dimensão de proibição de inversão do ónus da prova e o direito ao silêncio do arguido.

      21.º

      Com efeito, o tipo legal de crime e os respetivos elementos não podem ser configurados de modo a promover a inércia do Ministério Público, exigindo, em consequência, a ação do arguido.

      22.º

      A conformação constitucional das garantias penais e processuais penais exige justamente o contrário: a atuação do Ministério Público “à charge et a décharge” e a faculdade, não autoincriminadora, de inação do arguido.

      23.º

      Poder-se-ia questionar se não deveria a norma ser interpretada no sentido de caber ao Ministério Público a prova da licitude da origem.

      24.º

      Contudo, tal interpretação não corresponde à letra da lei, uma vez que o elemento do tipo legal de crime definido é “sem origem lícita determinada”. Bastaria, nesse caso, afirmar “sem origem lícita”. Esta configuração do tipo criminal parece afastar a necessidade de prova pelo Ministério Público da licitude.

      25º

      A referida interpretação conduziria, de resto, ao resultado de forçar o Ministério Público a uma prova da não proveniência de origem lícita – inexistindo, como é evidente, uma enumeração taxativa de origens lícitas de bens.

      26.º

      Uma tal conceção que assentasse na existência de uma lista de fontes lícitas seria, de resto, contrária ao princípio da legalidade em geral e, em particular, ao princípio da tipicidade da lei penal. Com efeito, de acordo com este princípio, os destinatários da norma devem poder identificar as condutas que o legislador qualifica como ilícitas; não o contrário, aquelas que, por não serem lícitas, passariam, automaticamente, a ser ilícitas.

      27.º

      O crime de enriquecimento ilícito não encontra, no modo como está definido no Decreto, paralelo nos sistemas penais próximos do Português.

      28.º

      Com efeito, não obstante ter consagração, tal como referido nos trabalhos preparatórios, na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, o crime em causa encontra naquela Convenção uma configuração muito distinta.

      29.º

      Assim, o artigo 20.º da Convenção contém uma recomendação aos Estados partes para que, no respeito pela sua Constituição e direito internos, considerem a possibilidade de adotar medidas legislativas de incriminação de funcionário público por enriquecimento ilícito.

      30.º

      Deste modo, a Convenção não determina um modelo concreto de crime de enriquecimento ilícito nem, tão-pouco, exige a inversão do ónus da prova – bem ao contrário, remete a definição do crime em concreto para o direito...

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