Acórdão nº 359/11 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Julho de 2011

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução12 de Julho de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 359/2011

Processo n.º 58/11

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

A., interdito por anomalia psíquica, representado pelo seu tutor, B., apresentou queixa-crime contra C., por factos que considerou integrarem o tipo legal de crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal.

Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido pela prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

O ofendido A., representado pelo seu tutor, constituiu-se assistente e formulou pedido de indemnização cível contra o arguido.

O arguido requereu a abertura de instrução, tendo vindo a ser pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de maus-tratos, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e, actualmente, pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Realizada audiência de julgamento, por sentença de 13 de Março de 2009, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Cascais, decidiu-se julgar a acusação improcedente e, em consequência, absolver o arguido da prática do crime de maus-tratos que lhe era imputado, julgando-se ainda improcedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante/ofendido, dele se absolvendo o arguido/demandado.

Inconformado, o assistente/demandante, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 23 de Novembro de 2010, decidiu julgar procedente o recurso e consequentemente:

  1. afastar, no caso presente, por inconstitucional, em virtude de violar os artigos 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1 e 4, da Constituição da República, a aplicação do artigo 131.º, do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de abranger a incapacidade para testemunhar ou prestar declarações (por força do artigo 135.º, n.º 4, do CPP) a pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica;

  2. em conformidade, declarar nula a sentença a quo e ordenar a reabertura da audiência, pelo mesmo tribunal, a fim de serem tomadas declarações ao assistente; e

  3. na prolação de nova decisão em primeira instância, em conjunto com a demais prova devem ser valorizados os depoimentos indirectos já produzidos em julgamento.

    O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), com fundamento na recusa de aplicação da norma constante do artigo 131.º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de abranger na incapacidade para testemunhar ou prestar declarações (por força do artigo 145.º n.º 3 do CPP) a pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica, por violação dos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, e 20.º n.ºs 1 e 4, da Constituição.

    O Ministério Público concluiu as suas alegações da seguinte forma:

    “Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, crê-se que este Tribunal Constitucional deverá:

  4. negar provimento ao presente recurso;

  5. confirmar, nessa medida, o Acórdão recorrido, de 23 de Novembro de 2011 do Tribunal da Relação de Lisboa;

  6. considerar, assim, inconstitucional, em virtude de violar os artigos , 13º, nº 1 e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República, o artigo 131º do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de abranger na incapacidade, para testemunhar ou prestar declarações (por força do artº 135º, nº 4, do CPP), a pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica.”

    O Assistente apresentou contra-alegações, tendo formulado conclusões idênticas às apresentadas pelo Ministério Público

    Fundamentação

    1. Da delimitação do objecto do recurso

      O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de determinar a reabertura da audiência de julgamento para tomada de declarações ao ofendido, no afastamento, com fundamento em inconstitucionalidade, do artigo 131.º, do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de abranger a incapacidade para testemunhar ou prestar declarações (por força do artigo 135.º, n.º 4, do CPP) a pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica.

      Foi precisamente esta recusa normativa que foi objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC.

      Neste processo-crime o Tribunal de Cascais absolveu o arguido por ter considerado que não havia sido produzida prova sobre os maus-tratos de que aquele era acusado.

      Apesar do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea d), do CPP, o ofendido, representado pelo seu tutor, constituiu-se assistente nos autos, não tendo prestado declarações na audiência de julgamento, em virtude de se encontrar interdito por anomalia psíquica, fazendo-se, assim, aplicação do regime da prestação da prova testemunhal previsto no artigo 131.º, do CPP, por força do reenvio constante do n.º 3, do artigo 145.º, do mesmo Código.

      Interposto recurso desta sentença, o Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu que impedir-se a vítima de um crime, interdito por anomalia psíquica, de intervir no processo dando a conhecer a sua versão dos acontecimentos, violava diversos parâmetros constitucionais, pelo que recusou a aplicação do referido conjunto normativo, com fundamento em inconstitucionalidade.

      Ora, estando apenas em causa a prestação de declarações em audiência de julgamento pelo ofendido que se havia constituído assistente, representado pelo seu tutor, há necessidade de excluir na enunciação da norma, cuja aplicação se recusou, o segmento relativo aos depoimentos das testemunhas, incluindo os das vítimas que não se tenham constituído assistentes no processo, e deve precisar-se que as declarações em causa são as prestadas em fase de audiência de julgamento.

      Assim, o objecto do presente recurso deve limitar-se à fiscalização da constitucionalidade do disposto no artigo 131.º, n.º 1, aplicável por remissão do artigo 145.º, n.º 3, ambos do CPP, quando interpretado no sentido de determinar a incapacidade para prestar declarações em audiência de julgamento da pessoa que, tendo no processo a condição de ofendido, constituído assistente, está interdita por anomalia psíquica.

    2. Do mérito do recurso

      2.1. Da norma sob fiscalização

      O presente recurso versa a matéria da proibição de meios de prova em processo penal, designadamente das declarações do ofendido que se tenha constituído assistente e que esteja interdito por anomalia psíquica.

      Dispõe o artigo 131.º do CPP (na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro):

      “Capacidade e dever de testemunhar

      1 – Qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.

      2 – A autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.

      3 – Tratando-se de depoimento de menor de 18 anos em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, pode ter lugar perícia sobre a personalidade.

      4 – As indagações referidas nos números anteriores, ordenadas anteriormente ao depoimento, não impedem que este se produza.”

      Por sua vez, o artigo 145.º, do CPP, tem o seguinte teor:

      “Declarações e notificações do assistente e das partes civis

      1 – Ao assistente e às partes civis podem ser tomadas declarações a requerimento seu ou do arguido ou sempre que a autoridade judiciária o entender conveniente.

      2 – O assistente e as partes civis ficam sujeitos ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação.

      3 – A prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente.

      4 – A prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis não é precedida de juramento.

      …”.

      A proibição absoluta das pessoas interditas, por padecerem de anomalia psíquica, deporem como testemunhas foi introduzida no processo penal pelo CPP de 1929 (artigo 216.º, 1.º).

      Até aí, se os “desassisados” eram considerados inábeis para depor, por incapacidade natural (artigo 2510.º, do Código Civil de 1867, aplicável ao processo penal por remissão do artigo 969.º, da Novíssima Reforma Judiciária, e anteriormente o § 5, do título LVI, do Livro III, das Ordenações Filipinas), essa “falta de siso” era apurada através da avaliação do juiz perante quem fossem apresentados para depor, e não de uma qualquer anterior declaração judicial de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
4 temas prácticos
4 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT