Acórdão nº 69/08 de Tribunal Constitucional (Port, 31 de Janeiro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Maria Lúcia Amaral
Data da Resolução31 de Janeiro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 69/2008

Processo nº 240/2007

Plenário

Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I

Relatório

  1. A., Ld.ª, instaurou no Tribunal Cível do Porto acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B., Ld.ª, pedindo que a ré fosse “condenada a pagar à autora a quantia de 14.000,00 euros, acrescida de juros, à taxa de 9,25%, desde a citação, e no mais legal”.

    Por despacho de 13 de Dezembro de 2006, a 1.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Porto decidiu que “a presente acção declarativa passa a seguir os termos do processo comum sumário, em conformidade com a indicação feita pela autora na petição inicial e o disposto nos arts. 462.º e 783.º e segs. do CPC, devendo submeter-se os autos a nova distribuição, agora sob a 2.ª espécie, dando-se baixa da anterior (cfr. arts. 220.º, a), 221.º e 222.º, todos do CPC).”

    Para assim concluir, a decisão recorrida recusou “a aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, assim como a norma correspondente ao art. 21.º do DL n.º 108/2006, de 08/06, na interpretação de que constitui autorização suficiente para implementação da medida acolhida pelo Ministro da Justiça através da dita Portaria, por se considerar que ambas as normas violam o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP e, consequentemente, não aplicar a esta acção o regime processual civil experimental aprovado pelo cit. Decreto-Lei.”

    Nos termos da respectiva fundamentação, “a questão que necessariamente se impõe é a de saber se há ou não razões juridicamente válidas que justifiquem a imposição e, simultaneamente, limitação da aplicação a um tão escasso número de tribunais com competência cível, o mesmo é dizer, em função das regras da competência territorial previstas nos artigos 73.º, 74.º, 76.º, 85.º a 87.º e 89.º, todos do CPC, a um tão escasso número de cidadãos e empresas de um Estado de Direito democrático como é a República Portuguesa (art. 2.º da CRP).” O tribunal a quo confessa a sua “total perplexidade perante o elenco e natureza dos argumentos utilizados para fundamentar a desigualdade de tratamento de cidadãos e empresas no plano do exercício de direitos e interesses subjectivos através do recurso aos tribunais. Julgamos mesmo que tais argumentos, assentes em meras considerações de natureza abstracta, vaga e imprecisa, estão muito longe de constituir justificação objectiva e racional para o que quer que seja.” “Antes de mais, temos por historicamente adquirida a ideia de que a mera localização territorial das causas, que por sua vez é consequência da localização das pessoas, das coisas ou dos interesses considerados relevantes, não poderá nunca constituir critério legítimo, ao menos num Estado de Direito Democrático e Unitário, para fundamentar a aplicação de diferentes formas de processo ao mesmo tipo de causas, o mesmo é dizer de diferentes conjuntos de actos estruturados, fundados em concepções diversas quanto aos meios mais adequados para alcançar a justa composição jurisdicional de conflitos de interesses de igual natureza.” Pelo que questiona: “Na verdade, como poderá entender-se que uma acção de despejo, pelo simples facto de ter por objecto um imóvel situado no Porto, assuma necessariamente tramitação diversa da assumida por uma acção de despejo que tenha por objecto um imóvel situado em Vila Nova de Gaia, ou Vila Velha de Ródão, ou Vila Flor?!”

    O tribunal a quo acrescenta: “Mas, mesmo à luz dos critérios de selecção alinhados na portaria em análise, a eleição dos quatro únicos referidos tribunais com competência para aplicação obrigatória do RPCE não pode deixar de merecer a qualificação de acto destituído de justificação racional e objectiva e, por isso, arbitrário.” E mais adiante na fundamentação questiona: “À luz dos critérios tidos pela portaria como legítimos para justificar a diferença de tratamento de cidadãos e empresas no processo de obtenção de resolução de um litígio de interesses particulares através dos tribunais, como compreender racionalmente que na área metropolitana do Porto apenas os juízos cíveis e os juízos de pequena instância cível reúnam os requisitos indispensáveis ao merecimento da aplicação do novo regime processual?” “E que dizer, no que respeita à área metropolitana de Lisboa, quando se considera que apenas os juízos cíveis de Almada e Seixal merecem ter papel activo em tão maravilhosa experiência legislativa dos tempos modernos?!”

    Ainda segundo a decisão recorrida, “está bom de ver que o carácter experimental do regime em causa não tem qualquer virtualidade para fundamentar objectiva e racionalmente uma resposta positiva à questão enunciada em III).” “Na verdade, o regime em causa não é nem mais nem menos experimental do que qualquer outro regime, no sentido de que enquanto vigorar no ordenamento jurídico nacional, produzirá inevitavelmente efeitos jurídicos concretos, afectando, consequentemente, o equilíbrio das relações jurídicas de toda a comunidade. Como qualquer outro regime legal em vigor, estará inevitavelmente sujeito a permanente juízo de avaliação de conformidade político-legislativa, podendo ser objecto de revisão ou revogação a todo o tempo por órgão constitucionalmente competente para o efeito.” “A originalidade da experimentação está, afinal, tão só, no facto de se aplicar apenas a algumas causas em tribunal, deixando de fora causas do mesmo tipo.” “Assim sendo, é o próprio carácter experimental do novo regime, na definição que ele mesmo apresenta, que se assume como razão de ser da desigualdade de tratamento materialmente infundada que vimos evidenciando. Dizendo de outro modo, fundamentar a discriminação de tratamento no seu carácter experimental significa qualificar tal experiência como discriminatória e, por isso, intolerável.” “Aplicar ao caso dos autos o RPCE, ou o regime do processo sumário previsto no CPC (aplicável a iguais causas nas demais comarcas do país, com excepção das comarcas de Almada e Seixal), não será com certeza indiferente à solução do mesmo (ou não estivéssemos, nas palavras do próprio legislador, perante «uma alteração de vulto num domínio sensível».”

  2. Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82), “para apreciação da declarada inconstitucionalidade do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, e a norma correspondente ao art. 21.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho”.

    Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações, concluindo:

    1. As normas constantes do artigo 21º do Decreto Lei n° 108/2006, de 8 de Junho, e do artigo único da Portaria n° 955/2006, de 13 de Setembro, enquanto delimitam a apenas determinadas circunscrições judiciais a aplicabilidade do “regime processual experimental”, ali previsto, não ofendem o princípio constitucional da igualdade.

    2. Na verdade, a diversidade de tratamento processual que se verifica entre as partes que litiguem nesses tribunais, onde já vigora o dito regime, e as que litigam nos tribunais sediados nas restantes circunscrições, decorre da prossecução de um interesse relevante na administração da justiça, evitando os inconvenientes que inevitavelmente decorreriam da aplicação generalizada de soluções discutíveis, drasticamente inovatórias e insuficientemente testadas pela prática judiciária.

    3. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de não inconstitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.

    A., Ld.ª não alegou.

    Tendo havido redistribuição, em virtude de nova composição do Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir.

    II

    Fundamentos

    A)

    A questão de constitucionalidade

  3. As normas sob juízo

    Estão sob juízo, no presente recurso de constitucionalidade, as normas contidas no artigo 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 e no artigo único da Portaria nº 955/2006.

    É a seguinte, a redacção do artigo 21º do Decreto-Lei nº 108/2006:

    Artigo 21º

    Aplicação no espaço

    1 – O presente decreto-lei aplica-se nos tribunais a determinar por portaria do Ministério da Justiça.

    2 – Os tribunais a que se refere o número anterior devem ser escolhidos de entre os que apresentem elevada movimentação processual, atendendo aos objectos de acção predominantes e actividades económicas dos litigantes.

    Determina por seu turno o artigo único da Portaria nº 955/2006

    Artigo único

    Aplicação no espaço

    O regime processual experimental, aprovado pelo Decreto-Lei nº 108/2006, de 8 de Junho, aplica-se aos seguintes tribunais:

    a) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca de Almada;

    b) Juízos Cíveis do Tribunal de Comarca do Porto;

    c) Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal de Comarca do Porto;

    d) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca do Seixal.

    A decisão de que interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público (desde logo ao abrigo da alínea a) do artigo 280º da Constituição) recusou a aplicação destas normas com fundamento em violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP.

    É no entanto impossível compreender o sentido e...

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