Acórdão nº 499/08 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução14 de Outubro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 499/08

Processo nº 717/07

Plenário

Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

  1. O pedido

    O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do artigo 281.º, nº 2, al. g), da Constituição da República Portuguesa (CRP), vem requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade das normas contidas nos artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e 59.º da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), preceitos relativos às relações financeiras entre o Estado e os municípios.

    As normas em causa, cujas epígrafes são, respectivamente, “Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios”, “Participação variável no IRS” e “Participação no IRS em 2007 e 2008”, dispõem da seguinte forma:

    Art. 19.º, nº 1, al. c): “A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participação: (…) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no nº 1 do artigo 78º do Código do IRS”.

    Art. 20.º: “1 – Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.

    2 – A participação referida no número anterior depende de deliberação sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcção-Geral dos Impostos, até 31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos.

    3 – A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a recepção da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de deliberação.

    4 – Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à taxa máxima definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é considerado como dedução à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo, relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a participação variável referida no n.º 1, desde que a respectiva liquidação tenha sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os elementos nela constantes.

    5 – A inexistência da dedução à colecta a que se refere o número anterior não determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participação variável apurada com base na percentagem deliberada pelo município.

    6 – Para efeitos do disposto no presente artigo, considera-se como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na respectiva declaração de rendimentos.

    7 – O produto da participação variável no IRS é transferido para os municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento pela Direcção-Geral dos Impostos.”

    Art. 59º: “Em 2007 e 2008, a participação a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 19º é de 5%.”

  2. Fundamentos do pedido

    3.1. De inconstitucionalidade

    Para fundamentar o seu pedido, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira utilizou vários argumentos que de seguida serão expostos:

    1. Violação do dever de solidariedade do Estado para com as regiões autónomas

      Em breves palavras, invoca-se a violação do princípio constitucional da solidariedade do Estado para com as Regiões Autónomas, extraído dos artigos 225.º, nº 2, da CRP (“o art. 225º, n.º 2, da Constituição (…) não deixa de ser sensível à construção de um dever de solidariedade nacional em prol das Regiões Autónomas”), 227.º, n.º 1, al. j) (este preceito, “sendo mais específico, faz ancorar uma possível dimensão do dever de solidariedade nacional numa perspectiva tributária”), e 229.º, n.º 1 (“Ainda noutro trecho, a Constituição Portuguesa volta a lembrar este dever de solidariedade nacional para com as Regiões Autónomas”), por força da “redução do montante até 5% da receita do IRS que deve ser totalmente atribuída à Região Autónoma da Madeira”, sendo essa “situação tanto mais chocante quanto é certo se acentuarem as disparidades derivadas do carácter insular do território do arquipélago da Madeira, que assim vê decepada uma parte considerável das receitas financeiras de que precisa”.

      b) Violação dos direitos autonómicos na participação das receitas dos impostos estaduais gerados e cobrados nas regiões autónomas

      A este propósito é alegada uma orientação constitucional geral, segundo a qual a autonomia regional não se concebe sem uma autonomia financeira, “pela qual as Regiões Autónomas pudessem dispor de receitas próprias, nos vários tipos de receitas financeiras existentes”. No entender do Requerente, “resulta evidente que a partilha, ainda que limitada, de uma receita regional com os municípios – no caso das receitas de IRS gerado e cobrado na Região Autónoma da Madeira – não se afigura conforme a esta orientação constitucional”.

      c) Violação do direito, constitucional e legal, de audição das regiões autónomas

      Por último, é invocado um vício de natureza procedimental resultante de a “Região Autónoma da Madeira não ter sido devidamente auscultada na instrução do procedimento legislativo de elaboração da Lei do Orçamento de Estado para 2007” [certamente um lapso do autor do pedido, pois do que se trata é da nova Lei das Finanças Locais], o que consubstanciaria a violação do direito de audição consagrado no artigo 229.º, n.º 2, da CRP, e concretizado nos artigos 90.º e seguintes do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (doravante EPA-RAM – aprovado pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto) e na Lei de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas (Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto). De forma mais concreta, é referido que um tal direito constitucional e legalmente consagrado não foi respeitado no caso em análise, uma vez que a “Assembleia da República não voltou a ouvir a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira após ter introduzido alterações substanciais no texto que viria a ser a versão final da Lei das Finanças Locais em comparação com a versão inicialmente apresentada”. Deste modo, prossegue-se, “a omissão de uma segunda audição por parte da Assembleia da República infringiu por completo o núcleo essencial deste direito de audição, ao não lhe [à Assembleia Regional] ter dado a oportunidade de uma segunda pronúncia, e impedindo-se assim de levar à consideração do decisor legislativo novos argumentos que este eventualmente devesse ponderar para assumir uma solução definitiva”. Este “segundo dever adicional de audição, que corresponde a um direito adicional de pronúncia por parte da Assembleia Legislativa” decorre de forma inequívoca da Lei n.º 40/96, mais concretamente do seu artigo 7.º (realce nosso)

      3.2. De ilegalidade

      São apontados dois fundamentos para a ilegalidade das normas em questão:

    2. Violação da norma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira que garante a totalidade da receita gerada no território regional em sede de IRS

      Quanto a este específico fundamento, invoca-se que não foi respeitado o nº 1 do artigo 112.º (Receitas fiscais) do EPA-RAM, o qual estabelece que “são receitas fiscais da Região, nos termos da lei, as relativas ou que resultem, nomeadamente, dos seguintes impostos: a) Do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares”.

      Argumenta-se que esta norma deve ser lida à luz do artigo 107.º, n.º 3, do EPA-RAM, relativo ao poder tributário da Região (“A Região dispõe, nos termos do Estatuto e da lei, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhe sejam atribuídas e afecta-as às suas despesas”) e, de forma mais genérica, daquela orientação constitucional geral, já mencionada, que se consubstancia na afirmação da autonomia financeira das Regiões Autónomas.

      Ora, alega-se que a Lei das Finanças Locais (mais concretamente, aqueles preceitos acima mencionados), “ao determinar a possibilidade de partilhar essa receita, unicamente regional, com os municípios, implica uma derrogação parcial desta norma estatutária, o que se afigura inadmissível”. Inadmissibilidade fundada na circunstância de que “a norma estatutária tem uma posição reforçada em relação a uma lei comum, como é a Lei das Finanças Locais, dada a função que se reconhece aos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas de, no sistema político regional, valerem como sub-Constituições, assim prevalecendo sobre quaisquer outras normas legais que não possuam valor reforçado”.

    3. Violação superveniente da norma da Lei das Finanças das Regiões Autónomas que garante a totalidade da receita gerada na Região da Madeira em sede de IRS

      Um outro fundamento de invalidade das normas em análise prende-se com o facto de que elas se tornaram ilegais por força da entrada em vigor da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro (Lei das Finanças das Regiões Autónomas).

      Mais concretamente, elas atentarão contra o artigo 16.º deste diploma legal, nos termos do qual “constitui receita de cada Região Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares: a) Devido por pessoas singulares consideradas fiscalmente residentes em cada Região, independentemente do local em que exerçam a respectiva actividade”. A leitura deste preceito deverá ser conjugada com o artigo 51.º, n.º 1, do mesmo diploma, o qual dispõe que “as competências administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos governos e administrações regionais...

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