Acórdão nº 427/09 de Tribunal Constitucional (Port, 28 de Agosto de 2009

Magistrado ResponsávelCons. Maria João Antunes
Data da Resolução28 de Agosto de 2009
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 427/2009

Processo n.º 698/09

Plenário

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. O Presidente da República requer, nos termos do disposto no artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), “a apreciação da conformidade com a mesma Constituição da norma da alínea b) do n.º 6 do artigo 14.º enquanto conjugada com as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo constante do Decreto n.º 366/X da Assembleia da República, recebido na Presidência da República no dia 12 de Agosto de 2009 para ser promulgado como lei”.

      Indica os seguintes fundamentos:

      A norma impugnada integra o Decreto nº 366/X, diploma que aprova o novo Código de Execução das Penas e que altera, significativamente, o modelo da legislação vigente sobre a matéria, bem como o próprio paradigma penal relativo aos fins das penas, determinando, para além do reforço dos direitos dos reclusos:

      a) A substituição do juiz do tribunal de execução de penas pelo Ministério Público no respeitante ao exercício da actividade de visitação regular dos estabelecimentos prisionais, de verificação da legalidade das decisões dos serviços prisionais e de outras funções relativas à execução da pena;

      b) A atribuição a órgãos da administração penitenciária do poder e da obrigação de decidir sobre a colocação do recluso em regime aberto, quando estiverem reunidos um conjunto de pressupostos de forma e de fundo.

      O regime jurídico em apreciação não deixa de suscitar dúvidas sobre a concordância prática entre a tutela de novos direitos reconhecidos aos reclusos e a prossecução dos fins de reparação social, a salvaguarda efectiva dos bens jurídicos fundamentais que o Direito Penal deve assegurar e a prevenção de situações causadoras de alarme social geradas pela colocação, não materialmente justificada, de condenados por crimes graves, em meios livres.

      Dispõe a norma do nº 3 do artigo 12º do Decreto nº 366/X que a execução das penas e medidas privativas da liberdade em regime aberto decorre em estabelecimento ou unidade prisional de segurança média e favorece os contactos com o exterior e a aproximação à comunidade, admitindo duas modalidades, a saber:

      i) O regime aberto no interior, que implica o desenvolvimento de actividades dentro do estabelecimento prisional ou nas suas imediações, com vigilância mais atenuada;

      ii) O regime aberto no exterior, caracterizado pelo desenvolvimento de actividades de ensino, formação profissional, trabalho ou programas em meio livre e sem vigilância directa.

      Pelo seu turno, o artigo 14º do diploma fixa os pressupostos da colocação do recluso em regime aberto, a qual ocorre sempre com o seu consentimento, cumprindo sublinhar, de entre outros:

      i) Prévia formulação de um juízo de prognose favorável a uma não subtracção do recluso à execução da pena ou ao não aproveitamento desse regime para delinquir;

      ii) Adequação do regime aberto ao comportamento prisional do recluso, à salvaguarda da ordem, segurança e disciplina no estabelecimento prisional, à protecção da vítima e à defesa da ordem e paz social;

      iii) Colocação em regime aberto no exterior dos reclusos que, encontrando-se na situação prevista nos nºs i) e ii) desta rubrica, tenham cumprido um quarto da pena, gozado previamente uma saída jurisdicional com êxito e que não tenham pendente um processo que implique prisão preventiva;

      iv) Cessação da colocação do recluso em regime aberto, no caso de deixarem de se verificar os pressupostos referidos ou de se verificar o incumprimento pelo recluso das condições relativas à concessão desse regime.

      Sucede que,

      A competência para a decisão de colocação do recluso em regime aberto no exterior, de acordo com a alínea b) do nº 6 do artigo 14º do decreto, é cometida ao Director-Geral dos Serviços Prisionais.

      Cumpre, em qualquer caso, ao Ministério Público junto do Tribunal de Execução das Penas, de acordo com a alínea b) do artigo 141º do diploma, verificar a legalidade da decisão de colocação do recluso em regime aberto no exterior (a qual lhe deve ser comunicada nos termos do nº 8 do artigo 14º) e proceder à sua impugnação junto do tribunal de execução das penas, caso a considere ilegal.

      Se é um facto que os regimes abertos no interior e no exterior das prisões se encontram acolhidos na legislação em vigor (Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto, e respectivas alterações), sendo a correspondente autorização também cometida à competência da administração penitenciária, verifica-se, contudo, que os pressupostos dessa autorização foram modificados e alargados em termos que suscitam dúvidas quanto à sua constitucionalidade.

      Entre o modelo vigente e o novo modelo legal de colocação do recluso em regime aberto ao exterior existem algumas diferenças que importa assinalar:

      a) Enquanto o modelo vigente supõe que o regime aberto ao exterior possa ser concedido, caso a caso, pela administração prisional ao recluso, quando a sua personalidade e comportamento o justifiquem[1], já o novo modelo consagra o instituto como um virtual direito, alargado indistintamente a todos os reclusos, cabendo à administração o exercício de um poder-dever de examinar a sua situação e decidir com base num conjunto de pressupostos legais de fundo e forma[2];

      b) Enquanto no modelo vigente os pressupostos que fundamentam a concessão do referido regime consistem na ausência de receio que o condenado se subtraia à execução da pena ou se aproveite da situação para delinquir[3], no novo modelo exige-se, cumulativamente, que a administração pondere também a adequação do regime ao comportamento prisional do recluso, à segurança e disciplina no estabelecimento prisional, à protecção da vítima e à defesa da ordem e da paz social[4];

      c) Enquanto o modelo vigente de regime aberto ao exterior configura uma virtual excepção ao regime geral de execução de penas, sendo passível de ser conferido num momento de consolidação da mesma pena, mormente em fase avançada de preparação para a liberdade[5], o novo modelo admite que o regime aberto ao exterior possa ser concedido como regra geral e numa fase precoce, após o cumprimento de apenas um quarto da pena[6];

      d) Enquanto o modelo vigente implica que o detido possa sair do estabelecimento, com ou sem custódia[7], o novo modelo determina que o recluso saia sempre sem vigilância directa[8];

      e) Enquanto o modelo vigente estabelece algumas regras sobre os termos do cumprimento da pena em regime aberto[9], o novo modelo, que revoga a legislação em vigor, nada esclarece sobre a relação entre o estabelecimento penitenciário e o recluso, os limites temporais de aplicação do regime aberto ao exterior e a sua relação com a liberdade condicional, deixando de regular a configuração dos termos em que se executa o referido regime.

      Se não é isenta de dúvidas de constitucionalidade, atenta a salvaguarda da reserva de jurisdição e do respeito pelo caso julgado, a faculdade hoje conferida ao Director Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) pelo nº 1 do artigo 58º do Decreto-Lei nº 265/79, para colocar um recluso em regime aberto no exterior, as mesmas dúvidas tornam-se ainda mais pertinentes a propósito da norma constante da alínea b) do nº 6 do artigo 14º do Decreto n.º 366/X, conjugada com as alíneas a) e b) do nº 1 e com a norma do nº 4 do mesmo artigo, na medida em que a mesma alarga os requisitos que condicionam a decisão do DGSP.

      10º

      O paradigma em vigor em sede de execução das penas de privação de liberdade, em sentido amplo[10], consiste na distinção entre um domínio material de controlo e modelação da execução que é cometido à actividade jurisdicional desenvolvida pelo tribunal de execução das penas - e, mais concretamente, pelo juiz desse tribunal - e um domínio de organização e inspecção das instalações penitenciárias voltado para o cumprimento da pena, que é atribuído à função administrativa[11].

      11º

      Daí que, ao abrigo da mesma legislação, se tenha clarificado, no respeitante à definição do âmbito da reserva de jurisdição em matéria de execução de penas, que:

      a) A execução de penas previstas na lei criminal só pode ter lugar mediante decisão do tribunal competente transitada em julgado, dotada de força executiva e pela forma prevista na lei (artigo 5º do Decreto-Lei nº 402/82);

      b) Compete aos tribunais de execução de penas decidir sobre a cessação do estado de perigosidade criminal, sobre a substituição das penas por liberdade vigiada ou caução, sobre a concessão da liberdade condicional ou sobre a sua revogação e sobre a reabilitação dos condenados em quaisquer penas (artigo 22º do Decreto-Lei nº 783/76);

      c) Compete ao juiz do tribunal de execução das penas conceder e revogar saídas precárias prolongadas (nº 4 do artigo 23º do Decreto-Lei nº 783/76);

      12º

      O conteúdo e alcance da função jurisdicional retira-se do artigo 202º da CRP, dela decorrendo que:

      a) No plano orgânico, essa actividade é exercida exclusivamente pelos tribunais, pois “Só aos tribunais compete administrar a justiça (reserva de juiz) não podendo ser atribuídas funções jurisdicionais a outros órgãos, designadamente à Administração Pública” (Acórdão nº 453/93 do Tribunal Constitucional);

      b) A mesma função supõe a passividade, imparcialidade, irresponsabilidade e independência dos tribunais (artigo 216º da CRP) atributos que são logicamente extensíveis ao estatuto dos magistrados judiciais, traduzindo-se em especial, a independência dos juízes, “(…) no dever de julgar apenas segundo a Constituição e a lei, sem sujeição, portanto, a quaisquer ordens ou instruções”, pelo que na “interpretação e aplicação das leis, hão-de (…) agir sem outra obediência que não seja aos ditames da sua própria consciência” (Acórdão nº 393/89);

      c) No plano substancial, de acordo com o artigo 202º da CRP, a...

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