Acórdão nº 94/15 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Fevereiro de 2015

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução03 de Fevereiro de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 94/2015

Processo n.º 822/14

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

O Ministério Público instaurou no Tribunal do Trabalho de Lisboa, ao abrigo do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e dos artigos 186.º-K e 186.º-L do Código de Processo de Trabalho, ação declarativa de reconhecimento de existência de contrato de trabalho contra A., S.A., pedindo que fosse declarada a existência de um contrato de trabalho entre a trabalhadora B. e a Ré.

O Tribunal do Tribunal de Lisboa proferiu despacho saneador em 17 de julho de 2014, no qual, conhecendo da questão da inconstitucionalidade dos artigos 26.º, n.º 1, al. i) e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R do CPT, suscitada pela Ré, decidiu recusar a aplicação das referidas normas com fundamento na sua inconstitucionalidade e, em consequência, absolver a Ré da instância.

O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pedindo a fiscalização da constitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada.

O Ministério Público apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

88. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor do douto despacho de fls. 214 a 227 dos presentes autos, proferido pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa – 2.º Juízo, 2.ª Secção, “(…) ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 72º nº 1 al. a) e nº 3 e 70º nº 1 al. a) da Lei 28/82 de 15/11”.

89. O objeto do presente recurso vem identificado nos seguintes termos:

“As normas [sobre] cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie são as seguintes:

Artigos 26º nº 1 al. i), 186ºK a 186ªR todos do Código do Processo de Trabalho”.

90. Os parâmetros constitucionais da desconformidade declarada, embora não expressos no requerimento de interposição de recurso, são os invocados na douta sentença recorrida, a saber, o “Princípio Fundamental do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2º da C.R.P, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança”; o “Princípio Fundamental da Liberdade de Escolha do Género de Trabalho, consagrado no art. 47º/1 da C.R.P.”; e o “Princípio Fundamental da Igualdade, consagrado no art. 13º da C.R.P.”.

91. As conclusões sobre a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, alcançadas pelo Mm.º Juiz “a quo”, fundaram-se num argumentário ideológico de que discordamos e que contestamos, sinteticamente, nos termos que em seguida se discriminam.

92. O Mm.º Juiz “a quo”, desprezando os potenciais desequilíbrios (e mesmo desigualdades) entre os contratantes-patrões e os contratantes-trabalhadores, que constituem a razão de ser do desenvolvimento do direito do trabalho enquanto ramo especial do direito privado, trata o contrato de trabalho como se de um qualquer contrato celebrável entre contraentes colocados no mesmo plano fáctico-jurídico - um contrato do âmbito do direito civil – se tratasse.

93. Desvaloriza, igualmente, o Mm.º Juiz “a quo”, que, por via da regulamentação laboral estatuída, se propõe o legislador ordinário compatibilizar a liberdade contratual, corolário do princípio da autonomia privada, com o princípio da igualdade nas suas vertentes de proibição do arbítrio e de obrigação de diferenciação.

94. Concretizando o seu pensamento, e lançando os fundamentos da decisão de não aplicação das normas dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, por inconstitucionalidade, defendeu, o Mm.º decisor “a quo”, que o regime legal criado por estas normas jurídicas, representa uma intromissão ilegítima do Estado numa relação jurídica de natureza absolutamente privada, impondo aos contraentes a resolução judicial de um litígio inexistente e a desnecessária conformação de interesses convergentes ou não conflituantes, sem que se verifique qualquer interesse público cuja prossecução justifique tal intervenção, o que não se aceita.

95. Ora, contrariamente ao afirmado pelo Mm.º Juiz “a quo”, entendemos que o bloco normativo desaplicado não limita a liberdade contratual ou a autonomia das partes, uma vez que não as inibe de celebrarem quaisquer tipos de contratos, nomeadamente contratos de prestação de serviços.

96. Para além disso, também não aceitamos que a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho promove um litígio onde o conflito era inexistente e os interesses contratuais eram convergentes, uma vez que, se o nomen juris atribuído ao contrato não corresponder aos seus objeto e conteúdo, em fraude à lei, então é seguro que inexiste tal convergência de interesses e que o litígio só não é espoletado porque o contraente mais frágil se encontra económica, social e juridicamente constrangido.

97. Contestados estes pressupostos ideológicos, contesta-se, igualmente, a consequência abusiva retirada pela douta decisão impugnada, no sentido de que a introdução, pelo legislador, de uma nova forma processual sem qualquer alteração legislativa do direito substantivo privado, constituiria uma mutação da ordem jurídica com a qual os destinatários não poderiam contar.

98. A previsibilidade da atuação dos poderes públicos, ínsita nos princípios da segurança jurídica e da confiança, reporta-se a expectativas, legitimamente criadas pelos cidadãos, resultantes de comportamentos dos poderes públicos e não, conforme resulta do sustentado na douta decisão recorrida, do desejo privado de imutabilidade da ordem jurídica.

99. Ora, conforme resulta, com evidente clareza, do caso sob escrutínio, nunca o Estado criou, nos cidadãos – trabalhadores ou empregadores -, qualquer expectativa de imutabilidade da ordem jurídica no tocante a meios processuais de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, que os levasse a prever, conformando, assim, as suas ações, que não seria criado um tipo processual que permitisse reconhecer se um contrato estabelecido entre privados, independentemente do seu nomen juris, era, ou não, um contrato de trabalho.

100. Assim, não ocorreu, pois, qualquer alteração imprevisível da ordem jurídica nem qualquer frustração de expectativas legítimas objetivamente consolidadas e, consequentemente, não se verifica que o bloco normativo desaplicado ofenda o princípio constitucional do Estado de direito democrático, plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, quer na sua vertente de princípio da segurança jurídica, quer na do princípio da confiança.

101. Não se verifica, igualmente, a ofensa do princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dado que as normas desaplicadas se revelam insuscetíveis de o violarem, uma vez que não regulam qualquer dimensão substantiva da eleição de uma profissão ou de um género de trabalho, objeto da proteção constitucional, apenas prescrevendo sobre o procedimento de adequação da regulamentação jurídica à atividade profissional efetivamente desenvolvida.

102. Por fim, também não violam, aquelas normas, o princípio constitucional da igualdade, o qual não é, sequer, convocável neste cenário de estrita contraposição entre regimes processuais distintos, marcados por diferenças insuscetíveis de se repercutirem significativamente nas esferas jurídicas dos cidadãos.

103. Todavia, ainda que assim não fosse, a regulamentação da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho obedece aos requisitos constitucionais que alicerçam o princípio da igualdade, não o ofendendo, nomeadamente, na sua dimensão de proibição do arbítrio, contrariamente ao sustentado na douta sentença recorrida, tratando de forma proporcionalmente diferente, situações, também elas, diferentes.

104. Em face do ora expendido, não deverá o Tribunal Constitucional julgar materialmente inconstitucional as normas jurídicas contidas nos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, por violação dos princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da C.R.P, nas suas vertentes dos princípios da segurança jurídica e da confiança; da liberdade de escolha do género de trabalho, plasmado no artigo 47.º, n.º 1 da C.R.P.; e da igualdade, previsto no artigo 13.º, da C.R.P.

Nos termos do acabado de explanar, deverá o Tribunal Constitucional conceder provimento ao presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.

A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

1.ª A ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é de simples apreciação positiva, estando o objeto do processo limitado à qualificação do vínculo contratual.

2.ª A possibilidade conferida a terceiro de, sem interesse dos contraentes, nem conflito entre eles, convocar a tutela jurisdicional do Estado para qualificar o vínculo que estes mantêm, num ordenamento jurídico caracterizado pela liberdade contratual e autonomia da vontade, infringe a proteção da confiança ínsita no princípio do Estado de Direito democrático.

3.ª Atento o objeto do processo, inexiste interesse público naquela qualificação, já que desta não decorrem efeitos de Direito para outras relações jurídicas conexas com o trabalho autónomo ou subordinado, designadamente de natureza tributária ou previdencial.

4.ª A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não prossegue interesse público, o Ministério Público não é o seu autor, nem a sua posição processual prevalece sobre a do putativo trabalhador.

5.ª Interpretação que reconhecesse ao Ministério Público a autoria da mencionada ação, remetendo o putativo trabalhador para papel meramente...

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