Acórdão nº 161/15 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelCons. Carlos Fernandes Cadilha
Data da Resolução04 de Março de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 161/2015

Processo n.º 1148/2014

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. A. intentou, em 25 de junho de 2014, execução para pagamento de quantia certa contra B., Lda., com base em documento particular constitutivo de obrigações, assinado pelo devedor, executado nos autos, em 30 de junho de 2013.

    Aberta conclusão, por dúvidas sobre a exequibilidade do título executivo, em face do preceituado no artigo 703.º do Código de Processo Civil (CPC), na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, foi proferido despacho judicial que recusou aplicação à referida norma do artigo 703.º do CPC vigente, «na parte em que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do anterior Código de Processo Civil», por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

    O Ministério Público interpôs recurso obrigatório desta decisão, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), na medida em que recusou a aplicação dos referidos preceitos legais naquela dimensão normativa.

    O Tribunal recorrido admitiu o recurso.

    Tendo o recurso prosseguido para apreciação de mérito, o Ministério Público apresentou alegações em que formula as seguintes conclusões:

    57. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão de fls. 11 a 15 dos presentes autos, proferido pelo Tribunal do Trabalho de Tomar, ao abrigo do disposto “nos artigos 69º, 70º nº 1- al. a), 71º, 72º nº 3, 75º, e 78º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro, com a redação introduzida pela Lei nº 13-A/1998 de 26 de fevereiro”.

    58. Este recurso tem por objeto a decisão“ (…) que recusou a aplicação do art.º 703.º, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013 na parte em que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugado com o art.º 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 e interpretado no sentido de se aplicar a documentos particulares anteriormente dotados de exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1, do art.º 46.º do Código de Processo Civil na sua versão anterior (…) ”.

    59. O parâmetro constitucional, cuja violação é invocada, é o “princípio da Segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos integradores do princípio do Estado de Direito Democrático do art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa”.

    60. O legislador ordinário, autor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, ao alterar o Código de Processo Civil - na parte que nos importa - em matéria de espécies de títulos executivos, decidiu excluir do seu elenco os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”, retirando-lhes, com efeito – em nosso entender – retrospetivo, a exequibilidade que os caracterizava à data da sua constituição.

    61. Esta mudança de natureza ocorreu, de acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 6.º, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com a verificação do facto complexo consistente na conjugação da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil com a não instauração de execução fundada no título executivo entretanto descaracterizado.

    62. A interpretação normativa sob escrutínio, embora não se inclua na categoria da retroatividade autêntica, é - na medida em que pretende reger para o futuro mas atinge situações, posições e relações jurídicas presentes, geradas no passado e ainda não terminadas -, de natureza, indubitavelmente, retroativa inautêntica ou retrospetiva.

    63. Encontrando-se a aludida interpretação normativa excluída do campo dos “casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição”, vem, o Tribunal Constitucional, lançando mão, para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica, de um juízo-ponderação que “assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.

    64. Para a aferição da conformidade das normas infraconstitucionais com o princípio paramétrico da proteção da confiança, vertente subjetiva do princípio da segurança jurídica, e para que seja devida a sua tutela, exige o Tribunal Constitucional que se reúnam dois pressupostos essenciais:

    “a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

    b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (…)”.

    65. No caso vertente, verifica-se, pelo recurso ao teste dos requisitos de preenchimento de tais pressupostos, que ocorreu uma violação do referido princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente subjetiva de princípio de proteção da confiança.

    66. Em primeiro lugar, o Estado-legislador produziu normação, ao longo das últimas décadas, coerente e consistentemente, no sentido da persistente redução dos “requisitos de exequibilidade dos documentos particulares”.

    67. Em segundo lugar, tal comportamento, atenta a sua persistência, criou nos cidadãos a convicção da manutenção do arbítrio estatal sobre os requisitos do título executivo e, fundamentalmente, da sua não reversibilidade, tornando, consequentemente, imprevisível a inversão conceptual originada com a publicação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

    68. Por outro lado, comprova-se que os cidadãos fizeram planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual», uma vez que, se assim não fosse, muitos dos credores que são, presentemente, titulares de um mero documento particular (assinado pelo devedor, e que importe constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes), que à data da sua constituição consubstanciava título executivo, poderiam, oportunamente - caso fosse previsível a alteração legislativa sob escrutínio -, ter obtido, dos devedores, a subscrição de documento formalmente mais exigente (máxime documento exarado ou autenticado por notário), cuja exequibilidade não seria, assim, eliminada.

    69. Por fim, inexistem razões de interesse público que justifiquem a aplicação retrospetiva da mutação na ordem jurídica decidida pelo Estado-legislador.

    70. Efetivamente, os motivos da alteração legislativa, extraíveis da “Exposição de motivos” da Proposta de Lei n.º 113/XII, sempre poderiam ser compatibilizados, sem prejuízo perspectivável, com um regime transitório que se limitasse a não retirar a qualidade de título executivo aos documentos que, no domínio da lei anterior, a tinham adquirido, o que, no confronto com o princípio constitucional da proporcionalidade, viola o sub-princípio da exigibilidade ou da suficiência.

    71. Por outro lado, a mutação da ordem jurídica também soçobra perante o sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, fundamentalmente porque a eliminação de um direito condicionante do acesso ao processo executivo - emanação do direito constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva -, sendo admissível, para a prossecução dos legítimos objetivos de política legislativa - desde que embasada nos limites da liberdade de conformação do legislador -, já não o é, extravasando os limites do razoavelmente aceitável, quando - sem fundada justificação e para atingir fins não consagrados constitucionalmente –, opera retrospectivamente, extinguindo-o, apesar de já consolidado na esfera jurídica do seu titular.

    72. A presente questão de constitucionalidade já foi abordada e resolvida no sentido que aqui defendemos, pelos doutos Acórdão n.º 847/2014 e Decisão Sumária n.º 82/2015, ambos da 1.ª Secção deste Tribunal.

    73. Em face do ora expendido, deverá o Tribunal Constitucional julgar materialmente inconstitucional a interpretação normativa conjugada dos preceitos contidos nos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, no sentido de que a primeira das disposições mencionadas se aplica a...

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