Acórdão nº 216/15 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Abril de 2015

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução08 de Abril de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 216/2015

Processo n.º 207/2013

  1. Secção

Relator: Conselheira Ana Guerra Martins

Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional

I – Relatório

  1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A., Lda e recorridos o Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P.; Ministério da Economia e do Emprego; B., S.A., e C., SA as primeiras vêm interpor recurso, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 9 de janeiro de 2013, para que sejam apreciadas as seguintes questões:

    “(…)

    a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 9.°, n.º 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro ("Lei n.º 62/2011"), por violação do disposto nos artigos 18.°, n.º 3 e 111.° (princípio da separação de poderes entre órgãos de soberania) da Constituição da República Portuguesa ("CRP"); a inconstitucionalidade material da norma constante dos artigos 25.°, n.ºs 1 e 2 e 179.°, n.ºs 1 e 2 do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei n.º 62/2011), quando interpretada, como o fez o Acórdão a quo, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. ("INFARMED") afira, no contexto do processo de concessão de autorização de introdução no mercado ("AIM"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e desse modo: i. obrigando-o a deferir requerimento de concessão de AIM para medicamento violador desses direitos; ou

    ii. impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto

    por violação dos artigos 17.°, 18.°,42.°,62.°, n.º 1 e 266.° da CRP;

    a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 8.°, n.ºs 1. 3 e 4 da Lei n.º 62/2011, quando interpretada, como o fez o Acórdão a quo, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED' afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e desse modo: i. obrigando-o a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos; ou

    ii. impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto

    por violação dos artigos 17.°, 18.°,42.°,62.°, n.º 1 e 266.° da CRP.”

  2. Notificada para o efeito, a recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:

    Conclusões

    1. A questão dos autos e que se pede a este Tribunal que aprecie é o culminar de uma invulgar conjugação dos três poderes públicos – o Executivo, o Legislativo e o Judicial – com vista a criar entraves ao cumprimento, por parte do Estado, dos seus deveres de respeito e garantia de efetivação que sobre ele recaem quanto a um concreto direito fundamental: o direito de propriedade industrial relativo a medicamentos.

    2. Vem assim questionada a interpretação dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179, n.os 1e 2 do Estatuto do Medicamento e 8.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 62/2011 no sentido de proibir que o INFARMED garanta e defenda ou, mais, que lhe imponha que desproteja e promova a ofensa de um direito fundamental de um cidadão, no quadro de uma ação administrativa especial onde se pede a declaração de nulidade, ou a anulação ou ainda a declaração de diferimento de eficácia de atos de AIM de medicamentos genéricos violadores de uma patente, bem como a condenação à abstenção da emissão dos PVPs desses mesmos medicamentos ou à abstenção da fixação de tais preços sem que essa fixação fique condicionada a apenas entrar em vigor na data em que a Patente das Recorrentes caducar.

    3. Os direitos de propriedade industrial, entre os quais se contam os direitos fundados em patentes de medicamento, encontram-se necessária e geneticamente ligados a outras manifestações da liberdade fundamental de criação cultural, também protegidas pelo ordenamento jurídico-constitucional e legal, como são os direitos de autor stricto sensu, pelo que o direito à patente de que as Recorrentes beneficiam, protegido pelo artigo 42.º da Constituição, é um direito, liberdade e garantia estando assim diretamente protegido pelo regime que a Constituição para tal prevê.

    4. Por outro lado, os direitos de propriedade industrial, como direito de propriedade que são, encontram-se no domínio formalmente abrangido pelo preceito do artigo 62.º da Constituição e integram o conteúdo substancialmente protegido pela norma constitucional referente ao direito de propriedade privada.

    5. Este Tribunal Constitucional tem reconhecido, em jurisprudência firme que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição abrange a propriedade intelectual e a propriedade industrial, tendo também salientado repetidamente que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17.º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18.º.

    6. Os direitos de propriedade industrial, como manifestações do direito de propriedade, são também reconhecidamente direitos fundamentais protegidos pela Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 1.º do seu Protocolo 1; por seu lado, o artigo 6.º, n.º 1 do Tratado da União Europeia, ao integrar a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, portanto, o seu artigo 17.º, consagrou a proteção da propriedade intelectual – integrando os poderes de dela fruir, utilizar, dispor e transmitir – como direito fundamental da União e princípio geral do direito comunitário.

    7. Além das três faculdades da propriedade a que é garantida expressa tutela constitucional (acesso, transmissão e manutenção), existe implícita também a tutela do poder de fruição (utendi e fruendi), a qual emana diretamente, porém, do artigo 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, aplicável na ordem interna por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP.

    8. O direito industrial de patente é um direito de propriedade temporário e na avaliação das consequências de qualquer ablação ao gozo da sua fruição sempre terá que se ter em conta esta sua natureza efémera.

    9. No que aos conflitos que entre direitos possam surgir diz respeito, importa notar que o direito à proteção da saúde constitucionalmente consagrado no artigo 64.º da CRP não atribui aos cidadãos um direito subjetivo público a prestações específicas nesse domínio, consagrando apenas um direito social a exigir a tomada de medidas por parte do Estado que concretizem essa proteção, não beneficiando do regime específico dos direitos, liberdades e garantias.

    10. Ao direito de propriedade como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias aplica-se o princípio da reserva de lei restritiva, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, ou seja, o princípio de que tais direitos só podem ser restringidos por lei e nos casos expressamente previstos na Constituição – o que significa que nenhuma autoridade pública, seja ela um tribunal ou um órgão da Administração direta ou indireta do Estado, pode deixar de respeitar um direito, liberdade e garantia ou a ele análogo, com base apenas na consideração de um direito social, mesmo que protegido constitucionalmente, salvo se legitimado pelos modos que a Constituição e a lei expressamente previrem (mormente, conforme se prevê no artigo 62.º, n.º 2 da Constituição, mediante expropriação nos termos dos artigos 105.º e seguintes do CPI).

    11. O confronto que poderia existir em razão da existência e consagração simultânea do direito de patente e do direito à iniciativa económica privada, intrinsecamente conflituantes, encontra-se já resolvido pela lei: por força do regime a que o direito à iniciativa económica privada está sujeito, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP, entendeu o legislador fixar um prazo de apenas 20 anos a contar da data do pedido de patente como limite do monopólio conferido, a que subjaz o entendimento de que tal duração é a necessária para salvaguarda desse outro direito constitucionalmente protegido.

    12. O dever constitucional de sujeição da Administração à Constituição, que radica na parametricidade constitucional, deve ser visto sob dois prismas: o seu dever de “executar de modo conforme as normas legais não inconstitucionais” (dimensão positiva) e o seu dever de não “praticar atos imediata ou consequentemente inconstitucionais – estando, portanto, impedida de aplicar normas jurídicas inconstitucionais” (dimensão negativa)

    13. Os princípios gerais da atividade administrativa constantes do CPA e as normas que concretizam preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer atuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada, nos termos do artigo 2.º, n.º 5 do CPA, o que significa que os deveres a que a Administração Pública está sujeita, no âmbito da sua atuação, são os mesmos em ambos os níveis – tanto constitucional como ordinário – o que torna irrelevante a discussão sobre se a vinculação administrativa é devida, em primeira linha, à lei ou à Constituição, na medida em que aqui elas são coincidentes.

    14. O princípio da constitucionalidade exige ainda, entre outras coisas, que a Administração interprete e aplique as leis no sentido mais conforme à Constituição, como decorre de resto do artigo 3.º, n.º 1 da CRP, que prevê que a validade de todos os atos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição.

    15. O princípio da especialidade não tem aplicação delimitativa no âmbito da aferição do dever de garantia de direitos fundamentais e não pode ser confundido com o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT