Acórdão nº 641/16 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução21 de Novembro de 2016
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 641/2016

Processo n.º 401/16

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de fevereiro de 2016, que, concedendo provimento parcial ao recurso, condenou a recorrente, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

No requerimento de interposição de recurso apresentado peticiona-se a apreciação de oito questões concretas e objetivas (...) a contender com a interpretação conjugada e dimensão normativa de várias normas do Código de Processo Penal (maxime arts. 61.º n.º 1 c), 117.º n.º 2, 187.º n.º 7 e 188.º n.º 7) a contender com a admissibilidade processual e de meios de prova sem ofensa de garantias de defesa, e arts. 38.º n.º 1 e 169.º n.º 1 do Código Penal, a contender com a constitucionalidade da incriminação do crime de lenocínio simples, sob quatro perspetivas distintas”. Tais questões foram enunciadas em oito parágrafos – com o mesmo teor de outras tantas conclusões da motivação do recurso para a relação de Coimbra – ordenados através das letras C., E., J., K., R., Y. e Z..

2. Admitido o recurso pelo tribunal a quo e remetidos os autos, neste Tribunal, o Relator proferiu a decisão sumária n.º 375/2016, nos termos da qual foi decidido não conhecer das questões formuladas nos parágrafos C., E., J., K. e R. do requerimento de interposição de recurso e, no mais, não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, negando provimento ao recurso nessa parte.

3. Notificada, a recorrente apresentou reclamação, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 3, da LTC, pugnando pelo conhecimento do recurso quanto à questão formulada em R. e pela revogação da decisão sumária quanto ao mérito.

O extenso requerimento apresentado encontra-se organizado em três partes, sendo a primeira intitulada “Considerações gerais”, dando nota do seu inconformismo da reclamante quando ao decidido, seguindo-se outra, sob a designação “Da opção pela decisão sumária e (des)proporcionalidade”, culminando com a última parte, “Da douta decisão sumária”, onde se encontram condensados os argumentos da oposição ao sumariamente decidido.

Na parte segunda, a recorrente sustenta, em síntese, que lhe deveria ter sido dirigido convite, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, “por forma a que suprisse qualquer eventual lacuna ou aperfeiçoasse o teor do requerimento”, aduzindo que “mostra-se vertido no n.º 2 do art. 78.º que a decisão sumária que radique na não indicação integral dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 a 4 do art. 75.º LTC terá de ser necessariamente precedida de notificação nos termos dos n.ºs 5 e 6 de tal norma”, para concluir ter sido preterida “formalidade” legal, que a decisão sumária foi proferida contralegem e, bem assim, que constituiu “decisão-surpresa”. Mais tem “por inconstitucional a dimensão normativa e interpretação do n.º 1 do art. 78.º-A LTC no sentido de ser admissível pelo Tribunal Constitucional, em sede de recurso de constitucionalidade, a prolação de decisão sumária radicada no não conhecimento do objeto do recurso, por alegada ausência de suscitação, de modo inteiramente claro e inteligível a constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa, sem que previamente seja a recorrente notificada nos termos e para os efeitos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A LTC, visando-se a sua pronúncia e reformulação da respetiva enunciação com adequação aos requisitos legalmente plasmados e consagrados, assim se obstando à proferição de decisões-surpresa nefastas aos seus interesses e direitos”.

Paralelamente, manifesta desconhecimento sobre se o Ministério Público emitiu parecer nos autos e insurge-se quanto à hipótese de tal ter acontecido (e a decisão sumária proferida), sem ter sido notificado do mesmo.

Na parte terceira, relativa à questão de mérito, diz o que segue (transcrição, expurgada dos muito abundantes realces, para melhor leitura):

«A reclamante não pode deixar de manifestar alguma perplexidade e surpresa face à douta fundamentação vertida na douta decisão sumária, maxime relativamente às questões formuladas nos parágrafos R, Y, Z e CC, ou seja, os juízos de inconstitucionalidade formulados que contendem diretamente com a dimensão normativa da punição a título de crime de lenocínio simples.

E é unicamente em relação a esses quatro juízos que ora se oferece reclamação, aceitando-se as doutas considerações vertidas na douta decisão sumária face às primeiras quatro questões, por razões de economia processual e por não contenderem diretamente com a condenação.

Com efeito, salvo o devido respeito, é claro e cristalino que tais juízos R, Y, Z e CC revestem dimensão normativa, pois são dotados de generalidade e abstração bastantes, sendo aplicável não só aos presentes autos mas a toda e qualquer operação cumulatória a levar a cabo em qualquer Tribunal.

E as questões de inconstitucionalidade levadas ao mui douto conhecimento de V/ Exas. apenas pretendem sindicar a conformidade constitucional de tal douta decisão, sendo facilmente decortável e apreensível, segundo se julga.

O objeto recursório, com a redução referida, versará sobre as seguintes quatro questões:

R. In casu, atento o consentimento, voluntarismo e desejo radicado em cada uma das mulheres, terá a recorrente (bem como os demais arguidos!) de ser expressamente absolvida atenta a exclusão da ilicitude, na medida em que se tem por inconstitucional, por compressão ilícita e não proporcional, nos termos do art. 18.º CRP, bem como violação dos direitos à liberdade (mesmo sexual, radicando em tal campo o direito à diferença!) e ao trabalho, consagrados nos arts. 1.º, 27.º n.º 1, 58.º) a dimensão normativa de tal norma (art. 38.º n.º 1 CP) quando interpretada no sentido de se ter por contrária aos bons costumes, para efeitos de não exclusão da ilicitude, a livre prática de relações sexuais, fora da via pública e em reserva da respetiva intimidade, ainda que a troco de dinheiro, sempre e quando a mesma seja levada a cabo entre maiores, de sexos distintos, radicando numa vontade e desejo livres e esclarecidos de ambas as pessoas sem qualquer coação, violência ou ameaça grave, constrangimento, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade ou aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade da vítima;

Y. Tem-se assim por inconstitucional o entendimento, e dimensão normativa do art. 169.º n.º 1 CP, segundo o qual o crime de lenocínio se baste com a existência de atos de cariz sexual, livremente entre maiores, em local cujo domínio pertence à esfera própria e privada da mulher ou por si livremente escolhido, sem qualquer controlo ou ingerência dos arguidos, pelo preço por ela acordado e traduzindo-se num comportamento instantâneo, sob pena de, a assim se entender, se alargar o âmbito da reação penal de forma desmesurada, sendo certo que todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação reta do Direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa, constituindo a essência do princípio da igualdade não em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igual o igual e de forma diferenciada o desigual;

Z. Apresenta-se igualmente disforme à Lei fundamental a dimensão normativa e interpretação de tal norma legal no sentido de consubstanciar crime de lenocínio a mera prática de relações de natureza sexual entre maiores quando inexista qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual bem como instrução, vigilância ou qualquer outra espécie de controlo a exercer pelos arguidos ou por quem quer que seja, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;

CC. A normal legal ora em causa (o art. 169.º n.º. 1 CP, qual caldeirão e albergue espanhol) foi criada para contornar qualquer eventual lacuna de punibilidade, com um âmbito de aplicação geral, tendo-se por inconstitucional tal forma de legislar, por violação da exigência de lei certa e do princípio da legalidade, vertidos nos arts. 1.º n.º 1 CP e 29.º n.º 1 CRP atenta a não determinação concretizante do facto ilícito típico ou da vítima, sendo, não uma norma legal mas um princípio jurídico que se mostra depois concretizado e subsumido no número seguinte dada a impossibilidade de, sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, ocorrer a prática ou mera possibilidade de tal crime e existência de uma vítima!

No que concerne à primeira questão, a fls. 8 da douta decisão, mostra-se referido que o seu objeto não corresponde a norma efetivamente aplicada pelo Tribunal.

Ora, se é um facto que assim possa ser em termos abstratos, por não ter a recorrente o dom da adivinhação expressis verbis, o certo é que a ideia de consentimento a não afastar a ilicitude está bem...

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