Acórdão nº 420/17 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução13 de Julho de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 420/2017

Processo n.º 917/16

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Por despacho de 19 de outubro de 2016 da 1.ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa foi indeferido o pedido do Ministério Público de autorização de transmissão dos dados de identificação de um utilizador a quem estava atribuído um determinado endereço de protocolo IP.

O pedido tinha sido formulado ao abrigo «das disposições conjugadas dos artigos 176.º do Código Penal, 2.º, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, por referência ao artigo 1.º, alínea j) do Código de Processo Penal (CPP), 4.º e 9.º da citada Lei n.º 32/2008» (cfr. fls. 47, por remissão do despacho de 17 de outubro de 2016, fls. 61). O utilizador em causa era suspeito no processo que tem por objeto a investigação de factos suscetíveis de integrar a prática de crime de pornografia de menores, previsto e punido no artigo 176.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do Código Penal, com pena de prisão de um a cinco anos.

O despacho fundamentou o indeferimento na inconstitucionalidade do artigo 6.º da Lei n.º 32/2008, por referência ao artigo 4.º da mesma lei, determinando:

«Em face do exposto:

a) Recuso a aplicação do disposto no art. 6.º da Lei n.º 32/2008 (por referência ao art. 4.º da mesma Lei) por contrariedade aos arts. 18.º e 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

b) Apenas por tal motivo, por decorrência do disposto no art. 32.º, n.º 8, da Constituição, indefiro o promovido a fls. 32.»

2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [doravante designada por LTC]), que foi admitido pelo tribunal recorrido.

Os autos prosseguiram para alegações, tendo o Ministério Público sustentado, em conclusão, o seguinte:

« III

Conclusões

1ª. O presente recurso obrigatório do Ministério Público, nos termos do respetivo requerimento de interposição, tem por objeto o despacho do Exmo. Juiz de Instrução, de 19 de Outubro de 2016, «na parte em que recusou aplicar o disposto no artigo 6º da Lei 32/2008, por referência ao artigo 4º da mesma Lei, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por entender que a mesma viola os princípios constitucionais de inviolabilidade do domicílio e da correspondência, artigos 18º e 34º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a obtenção de tais elementos probatórios, por constituir abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, se torna nula».

2ª. Condicionada ao objeto do processo (e do pedido do Ministério Público nele formulado), a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no art. 6º da Lei 32/2008, por referência ao art. 4º da mesma lei, tal como foi mediatizada pela decisão recorrida para a dirimição do caso concreto, há de restritivamente ser (i) precisada por referência ao art. 4º, nºs. 1, alín. a), 2ª parte e 2, alín. b) - iii), da mesma lei e (ii) subordinadamente conjugada com o art. 9º, igualmente da mesma lei (e não pronúncia sobre a amplitude do sistema de conservação de dados – do sistema em geral e do conjunto de dados globalmente considerados – exorbitantemente desconexionada do quadro da concreta situação dos autos).

3ª. É sujeita a esta dupla restrição na sua dimensão normativa – art. 6º, com referência, mais precisamente, aos nºs. 1, 2ª parte e 2, alín. b) - iii) do art. 4º e subordinadamente conjugado com o art. 9º, todos da Lei 32/2008 –, que o objeto inicial do recurso é delimitado (art. 635º, nº 4 do CPC).

4ª. O presente recurso mostra-se instrumentalmente útil – foi processualmente determinada a preservação dos dados em causa, até 1 de outubro próximo (doc. junto).

5ª. A Lei 32/2008, de 17 de julho, transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

6ª. O Tribunal de Justiça (TJ), por Acórdão da Grande Secção, de 8 de abril de 2014, proferido sobre dois pedidos de decisão prejudicial (art. 267º do TFUE), apresentados pela Irlanda e Áustria, declarou a invalidade da citada diretiva.

7ª. O juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida é emitido na esteira do citado Acórdão, essencialmente para ele remetendo na sua fundamentação.

8ª. A transposição da Diretiva 2006/24/CE pela Lei 32/2008 inscreve-se na evolução verificada no direito comunitário e no direito ordinário interno em matéria de telecomunicações e de prova digital.

9ª. A finalizar a apontada evolução legislativa, a Lei 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.

10ª. É precisamente ao abrigo da Lei 109/2009 que, em 9 de Setembro de 2016, é proferido primeiro despacho do Juiz de Instrução a determinar à operadora que comunique ao processo os dados pretendidos pelo Ministério Público.

11ª. A Diretiva 2006/24, com a instituição de um instrumento jurídico comunitário de imposição de conservação de dados, culmina um acidentado e complexo processo em termos de balanceamento entre os polos de liberdade e segurança e vem geneticamente marcada pela sua dualidade funcional (nºs. 5 a 6.5 do corpo da alegação).

12ª. Os questionamentos que antecederam a entrada em vigor da Diretiva 2006/24/CE, mantiveram-se ou intensificaram-se para além dessa data, tendo designadamente originado decisões em matéria de constitucionalidade por parte dos tribunais de alguns Estados-membros.

13ª. A validação da diretiva, nos termos do Acórdão do TJ, de 8 de abril de 2014, vem a falhar no teste da observância do princípio da proporcionalidade – em um dos seus segmentos, o da estrita necessidade.

14ª. É à luz do princípio da proporcionalidade, no apontado segmento, que, no nº 65 do Acórdão, se afirma «que a Diretiva 2006/24 não estabelece regras claras e precisas que regulem o alcance da ingerência nos direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.° e 8.° da Carta. Impõe‑se pois concluir que esta diretiva comporta uma ingerência nestes direitos fundamentais, de grande amplitude e particular gravidade na ordem jurídica da União, sem que essa ingerência seja enquadrada com precisão por disposições que permitam garantir que se limita efetivamente ao estritamente necessário» (nºs. 7 a 7.3 do corpo da alegação).

15ª. À lei 32/2008, que transpôs a diretiva em causa, se referiu já o Ac. 403/15, no sentido de que «estabelece amplas garantias no que toca ao acesso e conservação dos dados de tráfego e de localização das comunicações para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades».

16ª. Considerada a jurisprudência constitucional na matéria (nºs. 8.1 a 8.2.2. do corpo da alegação), interessa acentuar que, no caso dos autos, a pretensão do Ministério Público, obviamente não se reportando a dados de conteúdo, não visa a obtenção de dados de tráfego ou de localização.

17ª. Na verdade, os dados de tráfego e localização, com referenciação do endereço do protocolo IP, constavam do processo. Pretendia-se, tão só, com referência a dados já processualmente adquiridos, a obtenção de dados de base.

18ª. Dados prévios à própria comunicação e relativos à conexão à rede, «dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado» (art. 1º, nº 1 da Lei 32/2008) – no quadro da citada Lei 109/2009, «informação diferente dos dados relativos ao tráfego ou ao conteúdo … detida pelo fornecedor dos serviços» (art. 14º, nº 4), no caso, «que permita determinar … a identidade, a morada postal … do assinante» [alín. b) do mesmo número].

19ª. Em suma: visa-se no presente processo a obtenção de dados que «não assumem a dignidade que lhes permita conferir a proteção constitucional do sigilo das comunicações».

20ª. Os dados em causa não são, por outro lado, alcançados por um hipotético juízo de inconstitucionalidade, à luz do princípio da proporcionalidade (conjugadamente, arts. 18º e 34º, nº 4 da Constituição), que devesse ter por objeto a questão da indiscriminada amplitude e duração de conservação, bem como do universo de sujeitos abrangido, sistema que, na transposição da diretiva, se manteve nos arts. 4º e 6º da Lei 32/2008.

21ª. Ao invés da previsão abstrata e hipoteticamente configurada, os dados concretamente pretendidos visam a identificação de determinado suspeito em processo criminal [art. 1º, alín. e) do CPP] – e não aleatoriamente referidos a uma qualquer entre «todas as pessoas que utilizam serviços de comunicações eletrónicas, sem que, no entanto, (…) se encontrem, ainda que indiretamente, numa situação suscetível de dar lugar a ações penais» (nº 48 do Ac. do TJ, de 8 de abril de 2014, cit.).

22ª. Resta observar, em vista de invocada violação do art. 32º, nº 8 da Constituição, que os dados visados não virão processualmente consubstanciar, a essa luz (independentemente de sujeição a regime de arguição), prova nula, desde logo não tendo sido obtida com ofensa à integridade pessoal, a sua conservação e ulterior transmissão, no concreto caso dos autos, nos termos do art. 9º da Lei 32/2008, não poderão ser reconduzidos a situação de abusiva intromissão na comunicação.

Termos em que se conclui pela não...

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