Acórdão nº 521/18 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Outubro de 2018

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução17 de Outubro de 2018
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 521/2018

Processo n.º 321/2018

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A., Ld.ª e B. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 10 de janeiro de 2018.

2. No âmbito de processo-crime, o tribunal de 1.ª instância proferiu acórdão através do qual, entre o mais, condenou os aqui recorrentes pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada.

Inconformados, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Este Tribunal, através do acórdão ora recorrido, negou provimento a tais recursos, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

Com interesse para os presentes autos, pode ler-se nesse aresto:

«Alegam também os arguidos/recorrentes (…), que para os condenarem em face dos factos provados impugnados, o coletivo de julgamento não observou o princípio in dubio pro reo, como corolário da presunção de inocência. Como decorrência natural da observância desse princípio, devia o tribunal "a quo", na opinião desses recorrentes, considerar determinados como não provados face às pertinentes dúvidas suscitadas. Alegam ainda, alguns deles, que o disposto no Art.º 125.º do Código Penal, na interpretação que é realizada pelo tribunal a quo, viola o disposto nos n.ºs 2 e 5 do Art.º 32.º da CRPortuguesa.

Também aqui estes recorrentes não têm razão.

O princípio da presunção de inocência, na verdade, é um dos princípios fundamentais em que se sustenta o processo penal num Estado de Direito. Assumido como uma dos princípios estruturantes no âmbito da prova, nomeadamente no domínio da questão de facto, o princípio in dubio pro reo além de ser uma garantia subjetiva «é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 518-519). O que está em causa neste princípio é, na persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova em relação a factos imputados a um suspeito, um comando dirigido ao tribunal para «atuar em sentido favorável ao arguido» (cf. Figueiredo(...), Direito Processual Penal, 1981, pp. 215).

No caso concreto, tal como acima ficou explicitado em diversos pontos, não se suscitou ao tribunal qualquer dúvida razoável sobre os factos que considerou como provados. Ou seja, no caso, não se verifica – nem isso decorre da fundamentação de facto que sustenta a prova efetuada - qualquer ausência de certeza do tribunal sobre a factualidade que foi imputada aos arguidos. Nem se suscita com evidência qualquer dúvida probatória sobre os factos e a fundamentação realizada pelo tribunal a quo.

Resulta inequívoco da fundamentação do tribunal da condenação quais as provas em que sustentou a sua decisão e que tipo de valoração efetuou sobre a prova em causa que levou à conclusão de que os arguidos praticaram os factos em causa, tal como acima se deixou suficientemente relatado. Esse tribunal em momento alguma faz transparecer qualquer dúvida no processo de decisão. Valorou o que entendeu valorar quanto à prova produzida, justificou a sua opção e concluiu em conformidade. A utilização de presunções naturais ou judiciais, em articulação com o princípio da livre apreciação da prova, a que o acórdão recorrido fez recurso, não colide com este outro princípio da presunção de inocência dos arguidos, nos moldes que resultam da sua fundamentação. Tais presunções judiciais, tal como se deixou defendido no ponto iii. deste aresto, basearam-se em factos estabelecidos por prova direta, fundamentalmente de natureza documental; factos esses dos quais decorrem necessária e logicamente as conclusões extraídas pelo tribunal recorrido.

Certo que em processo penal não basta que a hipótese colocada pela acusação seja provável ou mesmo a mais provável, pois o princípio da culpa e da presunção da inocência exigem que o tribunal de julgamento decida para além de toda dúvida razoável com base em meios de prova efetivamente produzidos (ainda que indiretamente, ou seja, versando sobre factos indiciários ou indiretos), sendo certo que os arguidos têm direito a não colaborar na descoberta da verdade e, portanto, na sua incriminação, cabendo ao tribunal assegurar que a sua decisão sobre a factualidade assenta na certeza processualmente possível e, assim, exigível, escorada em prova efetivamente produzida – assim, o já acima mencionado Ac. da RE de 19/2/2013, processo n.º 425/09.6GEPTM.E1 (…). Confronte-se, também, sobre a prova indireta, o referido Ac. do STJ de 12/3/2009, processo n.º 09P0395 (…).

Mas, ao contrário que defendem os recorrentes nas suas diversas conclusões, é perfeitamente legítimo, em processo penal, o recurso a presunções simples ou naturais, visto que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (Art.º 125.º do CPPenal) e mesmo o Art.º 349.º do Código Civil (CC) prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (Art.º 351.º do mesmo CC). O mencionado princípio da livre apreciação da prova (cfr. Art.º 127.º do CPPenal), conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nos critérios legais de apreciação vinculada, enfim, nas regras da experiência, da ciência e da lógica. Devendo ser objetivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

Por outro lado, a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu. Tal como já se defendeu, no ponto iii desta fundamentação, a apreciação da prova indireta exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de modo a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/101.
E, conforme se escreveu no Ac. do STJ de 10/1/2008, “são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova direta» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (Art.º 127.º do CPPenal). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extração – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido”.

Este tem sido também o entendimento da jurisprudência constitucional, mais recentemente reafirmado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015 de 12/8, publicado no DR II.ª Série II de 16/11/2015 (…). O mesmo Tribunal Constitucional, ao debruçar-se sobre problemas de constitucionalidade de normas que estabelecem presunções legais em matéria penal, concluiu pela sua admissibilidade, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário. Para além do acórdão n.º 391/2015 de 12/8 acima citado, pode também referir-se o caso do acórdão n.º 38/86 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos Art.ºs 169.º, § 1.º, e 557.º do Código de Processo Penal (de 1929) e as do Art.º 2.º, n.º 2 e seu § único, do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de outubro de 1948, que se referiam à "fé em juízo" do auto de notícia em processo sumário.

Também o acórdão n.º 448/87 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), entre outros, no mesmo sentido, sobre a mesma...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
8 temas prácticos
  • Acórdão nº 806/22 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 30 de novembro de 2022
    ...posicionando pela inexistência de rutura com as garantias de defesa do arguido (Acórdãos do TC n.ºs 391/2015, 578/2016, 197/2017, 149/2018, 521/2018 e 444/2021). No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça acaba por omitir o juízo de fiscalização requerido, por entender a questão deslocada do......
  • Acórdão nº 540/17.2GBILH.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 20 de Fevereiro de 2019
    • Portugal
    • 20 de fevereiro de 2019
    ...em www.dgsi.pt processo nº 20/12.2PTBJA.E1. [4] Também consultável em www.dgsi.pt, processo nº 109/11.5GCSTB.E1. [5] No Acórdão do TC nº 521/2018, de 17.10.2018 (consultável em www.tribunalconstitucional.pt processo 321/2018), decidiu-se não julgar inconstitucional o art.º 125º do Código de......
  • Acórdão nº 741/21 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2021
    • Portugal
    • 23 de setembro de 2021
    ...de controlo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional (cf., por outros, os acórdãos do TC n.º 391/2015 e 521/2018), constituindo esta a verdadeira ratio decidendi da E. Por ser assim, mostra-se desajustado convocar no presente a doutrina relativa ......
  • Acórdão nº 671/19 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Novembro de 2019
    • Portugal
    • 13 de novembro de 2019
    ...de controlo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional (cf., por outros, os Acórdãos do TC n.º 391/2015 e 521/2018). 24. Toda a construção explanada pelo Tribunal a quo a partir do ponto 47. do Acórdão de 21-02-2017 corre no sentido de - verificada a oco......
  • Peça sua avaliação para resultados completos
8 sentencias
  • Acórdão nº 806/22 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 30 de novembro de 2022
    ...posicionando pela inexistência de rutura com as garantias de defesa do arguido (Acórdãos do TC n.ºs 391/2015, 578/2016, 197/2017, 149/2018, 521/2018 e 444/2021). No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça acaba por omitir o juízo de fiscalização requerido, por entender a questão deslocada do......
  • Acórdão nº 540/17.2GBILH.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 20 de Fevereiro de 2019
    • Portugal
    • 20 de fevereiro de 2019
    ...em www.dgsi.pt processo nº 20/12.2PTBJA.E1. [4] Também consultável em www.dgsi.pt, processo nº 109/11.5GCSTB.E1. [5] No Acórdão do TC nº 521/2018, de 17.10.2018 (consultável em www.tribunalconstitucional.pt processo 321/2018), decidiu-se não julgar inconstitucional o art.º 125º do Código de......
  • Acórdão nº 741/21 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2021
    • Portugal
    • 23 de setembro de 2021
    ...de controlo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional (cf., por outros, os acórdãos do TC n.º 391/2015 e 521/2018), constituindo esta a verdadeira ratio decidendi da E. Por ser assim, mostra-se desajustado convocar no presente a doutrina relativa ......
  • Acórdão nº 671/19 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Novembro de 2019
    • Portugal
    • 13 de novembro de 2019
    ...de controlo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional (cf., por outros, os Acórdãos do TC n.º 391/2015 e 521/2018). 24. Toda a construção explanada pelo Tribunal a quo a partir do ponto 47. do Acórdão de 21-02-2017 corre no sentido de - verificada a oco......
  • Peça sua avaliação para resultados completos

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT