Acórdão nº 39/17 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Fevereiro de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Catarina Sarmento e Castro
Data da Resolução09 de Fevereiro de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 39/2017

Processo n.º 336/15

Plenário

Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. Um Grupo de vinte e nove deputados à Assembleia da República eleitos pelo Partido Socialista, veio requerer, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, e na alínea f) do n.º 2, do artigo 281.º, da Constituição da República Portuguesa, e do n.º 1, dos artigos 51.º e 62.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade «do Decreto-Lei n.º 174/2014, de 5 de dezembro, e do Decreto-Lei n.º 175/2014, de 5 de dezembro, ou, subsidiariamente, do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 174/2014, de 5 de dezembro, e do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 175/2014, de 5 de dezembro».

Para impugnar a validade constitucional dos diplomas legais e, subsidiariamente, dos preceitos acima indicados, os requerentes consideram violada a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista nas alíneas q) e v), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição, e o princípio «de proibição da redução injustificada das atribuições e competências das autarquias locais», que extraem do n.º 2, do artigo 235.º e do n.º 1, do artigo 237.º da Constituição.

2. A inconstitucionalidade é invocada pelos requerentes com base nos seguintes fundamentos:

«I - Introdução e enquadramento histórico

A concessão atribuída à Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A.

1. Por contratos celebrados em 10 de abril de 1888, 5 de junho de 1897, 16 de agosto de 1898, 7 de julho de 1899 e 17 de março de 1900, o serviço público de transportes coletivos de superfície na cidade de Lisboa foi dado de exploração à Companhia Caminhos de Ferro de Lisboa, S.A.R.L. (adiante “Carris”), em regime de concessão atribuída pelo município, representado pela Câmara Municipal de Lisboa (adiante “CML”), e à Lisbon Electric Tramways, Ltd. (adiante “LET, Ltd.”) que, por sua vez, transferiu tal direito para a Carris.

2. Em 1973, a CML decidiu revogar, por acordo com a LET, Ltd., o contrato com esta celebrado em 7 de julho de 1898 e, na qualidade de concedente, proceder à novação da concessão e dos contratos de 10 de abril de 1888, 5 de junho de 1897, 16 de agosto de 1898 e 17 de março de 1900 celebrados com a Carris. Em consequência, celebrou em dezembro de 1973 com esta empresa um contrato de concessão, que foi ao tempo autorizado pelo Governo, nos termos da lei então aplicável, que substituiu, por novação, os contratos anteriormente com ela celebrados.

3. A concessão foi atribuída por 50 anos, renováveis por sucessivos períodos de 10 anos, em regime de exclusivo, com exceção da exploração das carreiras de transporte de passageiros que ultrapassassem os limites administrativos da cidade de Lisboa e das atividades acessórias referidas no n.º 4 da Base I do segundo anexo ao Decreto-Lei n.º 688/73, de 21 de dezembro (alterado, de forma que não é relevante para o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelos Decretos-Lei n.º 300/75, de 20 de junho, e 485/88, de 30 de dezembro).

4. Este percurso histórico encontra-se resumidamente referido no preâmbulo e nos arts. 1.º e 2.º do Decreto-lei n.º 688/73, de 21 de dezembro.

5. O Decreto-Lei n.º 346/75, de 3 de julho, reconhecendo a relação de concessão exclusiva entre a CML e a Carris, para além de transferir para o Estado a titularidade das ações da Carris detidas pelo município, dispôs que “O Estado assumirá todas as situações jurídicas que a Câmara Municipal de Lisboa detinha em relação à Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A.R.L.” em 4 de julho de 1975, regra que operou, portanto, a transferência da posição jurídica de concedente da CML para o Estado.

6. Essa relação contratual concessória não foi modificada com as primeiras alterações que foi sofrendo o regime das autarquias locais, sucessivamente introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 701-A/76, de 29 de setembro, que procedeu a uma primeira alteração do regime das suas competências, pela Lei n.º 79/77, de 25 de outubro, que aprovou o regime das autarquias locais, revogando as disposições ainda vigentes do Código Administrativo, e pelo Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de março, que reviu aquele regime. Com efeito, nenhum daqueles diplomas atribuiu aos municípios quaisquer competências ou atribuições em matéria de transportes públicos de passageiros.

7. Do mesmo modo, a Lei n.º 88-A/97, de 25 de julho, que estabeleceu o regime do acesso da iniciativa económica privada a determinadas atividades económicas, não modificou aquela realidade concessória; de facto, se é certo que o art.º 1º, n.º 1, alínea c), se refere aos “transportes ferroviários explorados em regime de serviço público” – admitindo, o que parece aliás ser pelo menos controverso, que o metropolitano pode ser incluído nesta categoria –, para proibir a sua exploração por empresas privadas, salvo em regime de concessão, não é menos certo que o n.º 5 previu expressamente que tais contratos de concessão poderiam ser outorgados, na qualidade de concedente, pelo Estado, por municípios ou por associações de municípios, mantendo pois a legitimidade concessória do Estado no contrato de 1973. Vale a pena recordar, aliás, que a redação de 1997 se mantém hoje em vigor, ainda que renumerada, mesmo depois de a Lei em causa ter sido alterada pela Lei n.º 17/2012, de 26 de abril, e pela Lei n.º 35/2013, de 11 de junho.

8. A Lei n.º 10/90, de 17 de março, que aprovou a Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres (adiante “LBTT”), dispôs, no art.º 20.º, n.º 1, que “os transportes regulares urbanos são um serviço público, explorado pelos municípios respetivos, através de empresas municipais, ou mediante contrato de concessão ou de prestação de serviços por eles outorgados [...]”, estatuindo no n.º 3 que o estabelecimento e exploração de tais transportes se deveria subordinar às regras gerais de diploma a publicar. A noção de “transporte urbano”, usada nesta disposição legal, consta do art.º 3.º, n.º 4, alínea b), subalínea 4), da LBTT e compreende aqueles transportes que visam satisfazer “as necessidades de deslocação em meio urbano, como tal se entendendo o que é abrangido pelos limites de uma área de transportes urbanos ou pelos de uma área urbana de uma região metropolitana de transportes”.

9. No que se refere, porém, ao transporte de passageiros nas regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, a LBTT criou um regime específico (cf. respetivo Capítulo IV), atribuindo às “comissões metropolitanas de transportes”, ao invés de aos municípios, como no restante território nacional, competências exclusivas em matéria de transporte público regular de passageiros (cf. art.º 27.º, n.ºs 7 e 8, e art.º 28.º, n.º 1, alínea e), da LBTT).

10. É assim manifesto que a LBTT visou alterar a relação concessória que se tinha consolidado em 1975, através do Decreto-Lei n.º 346/75, de 3 de julho, transferindo ope legis para as Comissões Metropolitanas de Transportes, logo que criadas e instituídas em concreto, a posição de concedente nos contratos de concessão de exploração de transportes urbanos de passageiros, entre eles os que vigoravam na área metropolitana de Lisboa – desde logo o contrato de 1973 em que a Carris assumia a posição jurídica de concessionária e em que o Estado assumira, em julho de 1975, a posição jurídica de concedente.

11. Logo em 1991 foi criada (mas não instituída em concreto) a Área Metropolitana de Lisboa através da Lei n.º 44/91, de 2 de agosto, sem que resulte evidente do seu texto – pelo contrário – que esta nova estrutura da administração local correspondia às “comissões metropolitanas de transportes” previstas na LBTT e que, portanto, se deveria ter por transferida para a AML, logo que instituída em concreto, a posição jurídica de concedente no contrato celebrado em 1973 com a Carris. A alteração deste diploma em 2008, pela Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, confirmou aliás que as Áreas Metropolitanas, entre elas a de Lisboa, não exerciam, em matéria de transportes, nenhuma competência, salvo no que se refere à “articulação das atuações entre os municípios e os serviços da administração central” na área, entre outras, da “mobilidade e transportes” – cf. art.º 4.º, n.º 2, alínea f).

12. A situação ficou porém esclarecida em 1999 com a publicação da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, referente à transferência de atribuições e competências para as autarquias locais. Com efeito, nos termos do art.º 13.º, n.º 1, alínea c), passaram a ser atribuições dos municípios as matérias de “transportes”, esclarecendo o art.º 18.º que a gestão das redes de transportes regulares locais que se desenvolvessem exclusivamente na área de um município lhe cabiam, em exclusivo. Vale a pena recordar neste passo que a Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, manteve em vigor, sem alteração, as transferências de competências decorrentes da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro – cf. art.º 3.º, n.º 3.

13. A Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, publicada quatro dias mais tarde, atribuiu aliás expressamente às câmaras municipais a competência para “criar [...] e gerir [...] redes de [...] de transportes” – cf. art.º 64.º, n.º 2, alínea f).

14. Tendo entrado em vigor no dia 18 de outubro de 1999 – cf. art.º 102.º - é claro que, a partir daquela data, se deve ter por transferida de novo para a CML a posição jurídica de concedente no contrato celebrado em 1973 com a Carris, do mesmo passo que se deve entender que o Estado, na sua manifestação enquanto Administração Central, ficou impossibilitado de exercer competências ou atribuições na área dos transportes urbanos regulares...

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