Acórdão nº 192/19 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Março de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução27 de Março de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 192/2019

Processo n.º 1009/17

3ª Secção

Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorrido B., representado por C., S.A., foi pela primeira interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), do acórdão proferido pelo STJ em 22 de junho de 2017 (cf. fls. 720-755).

2. Na Decisão Sumária n.º 75/2019 decidiu-se não conhecer do objeto do recurso por não estarem preenchidos vários pressupostos, cumulativos, de que depende tal conhecimento, nos seguintes termos (cfr. II – Fundamentação, n.º 5. e ss.):

«5. Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (mais recentemente, v., v.g., os Acórdãos deste Tribunal n.os 344/2018, 640/2018, 652/2018, 658/2018, 671/2018, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso, ainda que este tenha sido admitido pelo tribunal a quo. Conforme resulta do n.º 3 do artigo 76.º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, pelo que se deve antes de mais apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos na LTC. Caso o Relator verifique que algum, ou alguns deles, não se encontram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.

6. Cabendo aos recorrentes identificar o objeto do recurso – a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada –, a aferição do preenchimento dos requisitos de que depende a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, bem como a delimitação do objeto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, devem ter por base o invocado no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e reportar-se à decisão recorrida (ou decisões recorridas), tal como identificada(s) pelo recorrente – neste caso, o acórdão do STJ, de 22 de junho de 2017.

Este acórdão foi proferido no âmbito de uma ação de despejo e considerou procedentes ambos os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento apresentados pelo senhorio, ora recorrido (cf. fls. 720-755): a mora no pagamento de rendas imputável à arrendatária (embora tenha afastado a aplicação do n.º 3, do artigo 1083.º, do Código Civil, e considerado aplicável a cláusula geral contida no n.º 2 do mesmo artigo); e a falta de comunicação do contrato de locação de estabelecimento comercial sito no imóvel arrendado, celebrado entre a arrendatária e a ora recorrente (devida à luz do n.º 2 do artigo 1109.º e da al. g) do artigo 1038.º do Código Civil). O tribunal de primeira instância havia considerado provada a mora no pagamento de rendas imputável à arrendatária e, como tal, procedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento, abstendo-se de se pronunciar sobre o segundo argumento aduzido como fundamento de resolução do contrato (cf. fls. 416-418). O Tribunal da Relação do Porto considerou, todavia, provado que as rendas não haviam sido recebidas por causa imputável ao senhorio e que não havia mora da arrendatária; e ouviu as partes sobre o segundo fundamento apresentado para a resolução do contrato, tendo concluído pela sua improcedência (cf. o acórdão de fls. 585-627).

Uma vez que o STJ revogou esta decisão, veio a recorrente interpor recurso para este Tribunal, enunciando que pretende ver apreciada a conformidade (com os artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Constituição):

i) dos n.os 2 e 3 do artigo 1083.º do Código Civil (com a redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, vigente à data) «na interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que verificando-se mora creditoris do senhorio durante um alargado período de tempo, por omissão de ato necessário ao cumprimento da obrigação, nos termos do disposto nos artigos 1039.º n.º 2 e 813.º do Código Civil, e sobrevindo mora no pagamento de renda imputável ao arrendatário por prazo inferior ao previsto no n.º 3 do preceito e a impossibilidade de o contactar durante esse período, essa falta - do arrendatário - reveste gravidade suficiente para fundamentar a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, por via da aplicação da cláusula geral ínsita no n.º 2 do art. 1083.º»;

ii) do artigo 1049.º do mesmo Código, quando interpretado «no sentido de que a comunicação ao senhorio da locação de estabelecimento em arrendado feita pelo cessionário, nos termos e para os efeitos previstos naquela norma, deverá reunir as mesmas exigências legais e garantias que se colocam ao arrendatário cedente»; e, ainda,

iii) dos artigos 1109.º n.º 2 e 1049.º do Código Civil «atenta a interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que para acautelar o objetivo destas normas não é suficiente a transmissão ao senhorio da informação relativa a quem detém o gozo do prédio, ao motivo pelo qual outrem (que não o arrendatário) está no gozo efetivo do prédio, e qual a espécie contratual que lhe subjaz».

7. Em face deste enunciado, facilmente se verifica que não é possível identificar, nas questões colocadas pela recorrente em i) e iii), qualquer norma ou interpretação normativa dos preceitos legais em apreço, que seja dissociável das particularidades do caso.

Deste modo, o que a recorrente contesta e pretende realmente sindicar é o modo como, no caso concreto, o tribunal a quo ponderou os factos dados como provados e os subsumiu às hipóteses legalmente previstas, de modo a concluir que i) houve mora da arrendatária e iii) não foi devidamente comunicada ao senhorio a locação do estabelecimento comercial em causa – ou seja, que havia fundamento para o senhorio resolver o contrato de arrendamento.

Contudo, a pretendida reapreciação da interpretação e aplicação dos preceitos legais ao caso dos autos (por apelo a novo juízo subsuntivo) consubstanciaria uma revisão do mérito da própria decisão recorrida, o que não cabe no âmbito do recurso apresentado ao Tribunal Constitucional, de natureza estritamente normativa. A este Tribunal cabe apenas, como se sabe, o escrutínio da constitucionalidade de normas e não de quaisquer operações, designadamente o modo como o tribunal recorrido interpretou ou aplicou o direito infraconstitucional ao caso concretamente apreçado. Essa é matéria de direito comum, para a qual são competentes os tribunais comuns.

Tal como esclarece Carlos Lopes do Rego, «o recurso de constitucionalidade (…) tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto (…).» (v. Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, p. 32).

Uma vez que à jurisdição constitucional não compete a apreciação de decisões judiciais, sob pena de inadmissibilidade, forçoso é concluir que não compete a este Tribunal pronunciar-se sobre as principais questões enunciadas pela recorrente.

8. Compulsados os autos, verifica-se outrossim que estas supostas questões de constitucionalidade normativa não foram prévia e adequadamente suscitadas durante o processo – tal como a recorrente reconhece, ao alegar que estas «nascem, precisamente, com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de junho de 2017» (cfr. supra o par. n.º 10 do requerimento de interposição de recurso transcrito em I, 2). Não assiste, contudo, razão à recorrente quando sugere que o juízo do STJ configurou uma “decisão-surpresa”, que a dispensasse do cumprimento do ónus de prévia suscitação adequada de todas as questões enunciadas no recurso.

Relembre-se que a exceção invocada à regra da suscitação prévia – que decorre de se admitir que, em face de uma «decisão-surpresa», é inexigível o cumprimento de tal ónus antes de a parte ser confrontada com o teor da decisão em causa – tem tido um entendimento jurisprudencial muito estrito, destinado a não transformar a exceção em regra (entre os acórdãos mais recentes v., por exemplo, os n.os 633/2017, 712/2017, 32/2018, 344/2018, 487/2018, 490/2018).

À luz deste estrito e constante entendimento, não pode no presente caso considerar-se que a recorrente se encontrava dispensada do cumprimento do ónus da suscitação prévia das questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional. Não apenas não estão em causa interpretações normativas objetivamente imprevisíveis, inesperadas ou insólitas, como há evidência de a recorrente ter tido possibilidade de as antecipar em momento processual adequado à...

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