Acórdão nº 314/19 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Maio de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução29 de Maio de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 314/2019

Processo n.º 126/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., Lda., notificada da Decisão Sumária n.º 198/2019, que determinou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade por si interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), vem reclamar para a conferência nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da mesma Lei.

2. A recorrente, ora reclamante, solicitou, ao abrigo da convenção de arbitragem anexa a cada um dos Contratos de Concessão para o exercício de atividades de prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo nas áreas denominadas “Aljezur” e “Tavira”, celebrados em 25 de setembro de 2015, entre si e o Estado Português, a constituição de Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do despacho do Secretário de Estado da Energia, datado de 7 de dezembro de 2016, que determinou a sua rescisão. Esta fundamentou-se juridicamente na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 109/94, de 26 de abril, em conjugação «com o n.º 4 do artigo 8.º» de cada um dos referidos contratos de concessão. A cláusula em apreço tem a seguinte redação:

«1. A Concessionária fica obrigada a constituir e manter atualizados contratos de seguro, celebrados com qualquer empresa seguradora internacional de reputação reconhecida, contra os riscos inerentes à sua atividade, assegurando nomeadamente a cobertura de danos emergentes de responsabilidade civil da Concessionária.

2. Anualmente, aquando da apresentação dos planos anuais de trabalhos, a Concessionária deve fazer prova da existência do seguro junto da ENMC, mediante a apresentação de cópia da respetiva apólice.

3. Assiste à ENMC a faculdade de, de acordo com critérios de razoabilidade, notificar a Concessionária para que atualize, em prazo razoável, as condições contratuais da apólice de seguro.

4. O incumprimento do disposto nos parágrafos 1 e 2 deste artigo, bem como o incumprimento da obrigação imposta pela ENMC, nos termos da notificação a que se refere o parágrafo anterior do presente artigo constituem violação grave dos deveres contratuais da Concessionária, que justificam a rescisão do Contrato de Concessão.»

Por acórdão de 19 de dezembro de 2018, o Tribunal Arbitral decidiu «julgar improcedente o pedido principal, de impugnação do Despacho do Secretário de Estado da Energia de 7 de dezembro de 2016, e, por consequência, julgar igualmente improcedentes os pedidos que com aquele foram deduzidos numa relação de dependência».

Inconformada, a recorrente interpôs recurso de constitucionalidade deste acórdão, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), tendo em vista a apreciação das seguintes questões:

i) A inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 302.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), em conjugação com o princípio da autonomia privada e o “princípio permissivo de inserção de atos de autoridade no contrato”, segundo a qual se admite a contratualização de poderes exorbitantes do contraente público sem, ou independentemente, de norma legal habilitante, por violação do princípio da reserva de lei, da precedência de lei, do estado de direito democrático, do princípio do mínimo de densidade normativa no exercício de poderes de autoridade e da proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos;

ii) A inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 302.º do CCP, em conjugação com o princípio da autonomia privada e o “princípio permissivo de inserção de atos de autoridade no contrato”, segundo a qual é permitido que uma cláusula resolutiva expressa confira ao contraente público o poder de rescisão automática do contrato, assim que se verifique uma situação de incumprimento contratual, ainda que o contraente público, previamente, tenha conferido ao cocontratante prazo para sanar esse incumprimento e que o mesmo tenha sido, efetivamente, sanado, por violação do princípio da tutela da confiança enquanto corolário do princípio do estado de direito democrático e da proteção dos direitos e interesses legítimos dos particulares;

iii) A inconstitucionalidade da norma do artigo 308.º do CCP, quando interpretado no sentido de afastar a aplicação do prazo de caducidade do poder de decidir (previsto no artigo 128.º, n.º 6 do Código do Procedimento Administrativo) aos atos administrativos que operam uma resolução sancionatória de contratos administrativos, por violação do princípio do Estado de direito democrático e bem assim do princípio da proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

3. A decisão ora reclamada entendeu não tomar conhecimento do recurso, considerando, quanto à primeira questão:

– O objeto do recurso é inidóneo, uma vez que a recorrente, apesar de ancorar a interpretação normativa que questiona no artigo 302.º do CCP, em conjugação com os dois princípios que menciona, o que pretende, na verdade, é sindicar a validade de uma determinada cláusula contratual, constante de dois contratos celebrados entre si e o Estado, face a determinados parâmetros infraconstitucionais, sendo certo que o recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre normas ou interpretações normativas reportadas a determinados preceitos constantes de atos de autoridade com vocação para uma aplicação genérica (nomeadamente atos legislativos ou regulamentares), e não sobre cláusulas de contratos concretos;

– Subsidiariamente, a recorrente carece de legitimidade, uma vez que não cumpriu o ónus de suscitação prévia previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, e, no caso sub iudicio, não pode considerar-se estar em causa uma decisão-surpresa, já que a recorrente podia e devia ter contado com a possibilidade de o tribunal a quo vir a interpretar e aplicar ao caso a cláusula 8.ª, n.º 4, dos contratos de concessão como fez: com o sentido de atribuir ao contraente público a possibilidade de resolução do contrato, com fundamento em incumprimento das obrigações aí previstas, sem necessidade de interpelação admonitória;

– Igualmente a título subsidiário, por inutilidade do recurso, em virtude de o critério normativo sindicado não coincidir com o critério normativo aplicado pela decisão recorrida.

Relativamente, à segunda questão, entendeu-se na mesma decisão:

– O objeto do recurso é inidóneo, visto que a recorrente, mais do que questionar a admissibilidade da inclusão de cláusulas resolutivas expressas em contratos administrativos, insurge-se contra a própria decisão de aplicação da cláusula 8.ª, n.º 4, enquanto cláusula resolutiva expressa, feita pelo tribunal a quo;

– Ainda que assim não se entendesse, tal como sucede em relação à primeira questão e pelas mesmas razões, a recorrente carece de legitimidade e o recurso é inútil.

Finalmente, quanto à terceira questão, entende-se, uma vez mais, que a recorrente não se podia considerar dispensada do ónus de suscitação prévia da inconstitucionalidade, pelo que, omitindo tal suscitação, carece de legitimidade também no tocante à questão de constitucionalidade em apreço.

4. A reclamante não se conforma com o assim decidido, procurando na presente reclamação refutar as razões que fundaram a não verificação dos pressupostos de conhecimento do recurso de constitucionalidade (cfr. fls. 862-882).

O recorrido, ora reclamado, Ministério do Ambiente e da Transição Energética (inicialmente Ministério da Economia), pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

§ 1.º Quanto à primeira questão

5. A idoneidade do objeto do recurso quanto à primeira questão é abordada diretamente no ponto 7 da decisão reclamada, nos pontos 45 a 76 da reclamação e nos pontos 33 a 50 da resposta à reclamação.

Entendeu-se na decisão reclamada que o recurso de constitucionalidade se dirigia diretamente a sindicar a constitucionalidade da cl.ª 8.ª dos contratos de concessão.

A reclamante, à semelhança do que já fizera no requerimento de interposição de recurso, insiste que o tribunal a quo interpretou o n.º 4 de tal cláusula no sentido de o mesmo atribuir ao concedente um poder exorbitante não legalmente previsto e que tal só seria possível com base na interpretação do artigo 302.º do CCP em conjugação com os demais princípios referidos a propósito desta primeira questão:

«60. [A] Reclamante não pretende a sindicância da validade da cláusula contratual, mas sim a sindicância da interpretação da norma e princípios […] que o Tribunal Arbitral realizou para poder atribuir à cláusula contratual o sentido que lhe reconheceu.

61. Isto porque, para o Tribunal Arbitral ter atribuído à cláusula contratual o referido sentido, foi necessário considerá-la válida, o que a Reclamante não questionou junto do Tribunal Constitucional.

62. Mas para a considerar válida, teve de lhe encontrar fundamento, sendo que não o tendo identificado, só pode concluir-se que se baseou no texto do artigo 302.º do CCP ou em qualquer princípio habilitante de autonomia privad[a] ou até permissivo da inserção de atos de autoridade no contrato.

63. Isto é, o Tribunal Arbitral teve de se ater ao quadro normativo relativo à disposição dos poderes exorbitantes em sede contratual e à sua taxatividade, sendo que, dentro desse quadro normativo, o artigo 302.º do CCP surge como o “artigo regulador” da questão».

Trata-se de uma cadeia de raciocínios dedutivos assentes numa premissa não demonstrada: a consagração na citada cl.ª 8.ª, n.º 4, de um poder exorbitante não previsto diretamente no CCP. O objetivo é contornar o obstáculo à apreciação direta por parte do Tribunal Constitucional de...

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