Acórdão nº 415/19 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Julho de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução09 de Julho de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 415/2019

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi pelo primeiro interposto recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada pela sigla LTC), do acórdão de proferido por aquele Supremo Tribunal em 28 de fevereiro de 2019 (cfr. fls. 816-845), o qual julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido, ora recorrente.

2. Na Decisão Sumária n.º 388/2019 (cfr. fls. 857-867) decidiu-se não conhecer do objeto do recurso por não se encontrarem preenchidos dois dos pressupostos, essenciais e cumulativos, de que depende a admissibilidade do recurso – o pressuposto relativo à dimensão normativa do objeto do recurso e, acrescidamente, o pressuposto relativo à prévia suscitação adequada da alegada questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão ora recorrida (cfr. II – Fundamentação, n.º 6 e ss.). Assim se decidiu na Decisão Sumária ora reclamada:

«6. Cabendo aos recorrentes delinear o objeto do recurso (norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada), a aferição do preenchimento dos requisitos de que depende a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e, bem assim, a delimitação do objeto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade devem ter por base o invocado no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e reportar-se à decisão recorrida (ou decisões recorridas), tal como identificada(s) pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso e que fixa o respetivo objetoin casu, o identificado acórdão do STJ de 28/02/2019.

Pretende o arguido, ora recorrente, ver apreciada pelo Tribunal Constitucional a «norma do artigo 382 do CP, quando interpretada no sentido de integrar no conceito de funcionário os magistrados que exerçam funções na dependência do Estado Português, quando expressamente a norma do artigo 386 n.º 3 al. a) do mesmo diploma legal apenas equipara ao conceito de funcionário, os magistrados em funções de organizações de direito internacional público quando estejam em causa os crimes dos artigos 335, 372 e 374 todos do CP», por alegada violação dos artigos 13.º, 202.º, n.º 1 e 219.º, n.º 1, da Constituição (cfr. requerimento de interposição de recurso, supra transcrito em I, 2.)

7. Ora, a questão de constitucionalidade assim colocada não reveste uma dimensão normativa idónea para a requerida fiscalização de constitucionalidade.

7.1 O ora recorrente, Procurador da República, foi condenado por um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal (CP), na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de quinze euros, pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP) proferido em 11/07/2018 (cfr. fls. 730-748), decidindo em 1ª instância.

Pretendeu o recorrente discutir nas instâncias se a referida norma se aplica ou abrange as atividades concretamente exercidas pelo mesmo. Para o efeito, defendeu junto do STJ uma tese interpretativa do artigo 386.º do Código Penal que não viria a ser acolhida na decisão judicial ora recorrida (referindo-se o recorrente em especial à alínea a) do n.º 3 daquele preceito legal) segundo a qual essencialmente (cfr. alegações de recurso para o STJ, VI, fls. 772-verso a 775):

«VI - DO ERRO DE DIREITO POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ORDEM INTERNACIONAL E DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA

Erro de direito por violação de princípios de ordem internacional e da constituição da República Portuguesa por fundamentação do acórdão recorrido na interpretação de que o conceito de magistrado está incluído no conceito de "funcionário" do art.º 386°, n° 1, al. c) do CP, na medida em que, a equiparação prevista no n° 4 (deve entender-se no n° 3) desse preceito se refere a magistrados de organizações de direito internacional público.

E isto porque o arguido é magistrado do MºPº, em funções no DIAP - Porto mas afeto ao tribunal de instrução criminal do Porto, 1.ª Secção.

É do seguinte teor a norma legal da al. c) do n° 1:

"Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange quem, ... , mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou participar no desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional ..

E do seguinte teor a al. a) do n.º 3:

"São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335° e 372° a 374°,

a) os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público ... "

Não entende o recorrente esta interpretação do artigo 386° do CP, pois assenta numa (des)consideração concetual de magistrado. Uma (des)consideração a nível da ordem jurídica interna. e outra na ordem jurídica internacional.

A interpretação dada pelo tribunal "a quo" ao disposto no art.º 386.º do CP viola os princípios a que deve obedecer essa interpretação e que se encontram definidos no art.º 9º do Cod. Civil, ou seja, que não deve cingir-se à letra da lei, mas ao pensamento legislativo tendo em conta a unidade do sistema jurídico e de que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Na verdade, como se pode entender que na mesma norma o legislador se manifeste de maneiras diferentes quando se refere aos titulares dos órgãos do tribunal, os magistrados?

"Ubi lex non distinguit, nec dos distinguere debemus ".

Como se pode entender uma tal interpretação, não só de conceito, mas também de tratamento?

Então a nível da nossa ordem interna não há magistratura? Não há magistrados?

Por outro lado, o direito internacional público representa o conjunto de princípios que regulam as relações jurídicas dos Estados entre si. É o conjunto de normas que regula as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional, são principalmente, os Estados nacionais, embora a prática e a doutrina reconheçam também outros atores, como as organizações internacionais.

É um ramo do direito destinado a construir uma ordem jurídica de orientação a todas as nações e organizações no âmbito internacional, que regule todo o comportamento que extrapole a esfera da soberania.

Assim,

Conceitua-se como organização internacional uma associação voluntária de sujeitos de direito internacional (quase sempre Estados), constituída mediante ato internacional (geralmente um tratado), de caráter relativamente permanente, dotada de regulamento e órgãos de direção próprios, cuja finalidade é atingir os objetivos comuns determinados por seus membros constituintes.

Em que princípio legal assenta o tribunal "a quo" a sua interpretação?

Que convenção, que tratado conceitua os agentes das organizações públicas internacionais como magistrados?

Desconhece-se.

Mais,

Organizações internacionais de direito público são instituições criadas por países (estados soberanos), regidas por meio de tratados, que buscam através da cooperação a melhoria das condições económicas, políticas e sociais dos associados.

O que não cabe o conceito de tribunal. O tribunal resolve conflitos e aplica a lei. Funções que deve desenvolver com total independência e imparcialidade e que lhe são atribuídas em exclusivo num Estado de direito, sendo a magistratura do MP uma das componentes pessoais dos tribunais.

Trata-se de um vínculo funcional,

Tal como consta dos considerandos, sexto, dos princípios básicos da Carta das Nações Unidas, -Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura, adotados pelo Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Milão de 26 de agosto a 6 de setembro de 1985 e endossados pela Assembleia Geral das Nações Unidas nas suas resoluções 40/32, de 29 de novembro de 1985, e 40/146, de 13 de dezembro de 1985 -, e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.° 8° e 10°),

Como, também por esse modo, da nossa própria constituição.

Princípios que ofendem tal interpretação do tribunal recorrido. Ofensa que atinge o âmago da própria magistratura.

Os tribunais não são organizações de direito internacional público pois estas têm como fim, já referido supra, a cooperação para a melhoria das condições económicas, políticas e sociais, dos associados (dos Estados membros).

Os tribunais são organizações independentes imparciais de administração da justiça. Independência garantida pelo Estado e consagrada na Constituição ou na legislação do país, como impõe a Carta das Nações Unidas sobre a Independência da Magistratura, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Na verdade.

Nos termos da constituição o MºPº é um órgão de administração da justiça integrado nos tribunais – Cap. IV, Título V, Parte III da Constituição da Constituição da República Portuguesa, a quem compete o exercício da ação penal, de acordo com o n.º 1 do art.º 219º, da Constituição.

Ou seja, o MºPº não é só um órgão de justiça, "de administração da justiça", vide anotação II da Constituição Portuguesa anotada de Jorge Miranda., Rui Medeiros, Vol. III., pág. 207, à supra citada disposição legal, como uma magistratura caraterizada por "inamovível, responsável e hierárquica", n.º 4 e 5 da ainda citada disposição legal...

O que quer dizer que a al. c) do n.º 1, do art.º 386º do CP, não abrange os agentes com vinculação funcional ou pessoal, bem se refere na anotação do § 19 à citada disposição legal no Comentário...

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