Acórdão nº 502/19 de Tribunal Constitucional (Port, 26 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução26 de Setembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 502/2019

3.ª Secção

Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada (TAFPD), em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., o primeiro interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 196), com fundamento nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada pela sigla LTC) da decisão proferida por aquele Tribunal Administrativo e Fiscal em 17 de outubro de 2017 (a fls. 186 a 192-verso dos presentes autos).

2. O requerimento de interposição de recurso tem o seguinte teor (cfr. fls. 196):

«O Magistrado do Ministério Público, notificado da sentença proferida nos autos à margem referenciados, a qual julgou "em antecipação do juízo da causa principal [ ... ] procedente, por provada a acção, e em consequência declaro[u] nulas as decisões de exclusão de A. da lista de graduação do Concurso Interno e Externo de provimento de pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, da educação especial e do ensino vocacional da música para o ano escolar de 2017/2018 e da Oferta de emprego - Contratação de Pessoal Docente a Termo Resolutivo para o ano de 2017/2018, de que foi notificado por ofício da Secretaria Regional da Educação e Cultura datado de 28 de Julho de 2017, por aplicarem o disposto no artigo 194.º n.º 1 do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 21/2007/A, de 30 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n. °25/2015/A, de 17 de Dezembro, que viola o estatuído no artigo 30.º, n.°4 da Constituição da República Portuguesa", vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto os artigos 280° n.ºs 2, al. a), e 3 da Constituição da República Portuguesa, 70°, n.º 1, al. a), e 72°, n.ºs 1, al. a), e 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei n° 13-A/98, de 26 de Fevereiro, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.».

3. O recurso foi admitido por despacho do Tribunal a quo em 27 de outubro de 2017 (cfr. fls. 198).

4. Após a subida dos autos a este Tribunal a relatora proferiu despacho de alegações nos seguintes termos (cfr. fls. 208):

«Notifiquem-se as partes para alegar, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias, nos termos dos artigos 78.º-A, n.º 5, e 79.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão e, ainda, para se pronunciarem, querendo, no mesmo prazo, sobre a possibilidade de não se conhecer do objeto do recurso por não estar preenchido o específico pressuposto dos recursos de fiscalização de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.»

5. Após o decurso do prazo para o efeito, somente o recorrente apresentou alegações.

5.1 O recorrente apresentou alegações (cfr. fls. 210-243), nos seguintes termos, quanto à vertente substantiva do litígio (cfr. V, n.º 29 e ss e conclusões (cfr. VII, n.º 69 e ss):

«(…)

V

29. Abordada, e respondida, a questão prévia de natureza processual, passaremos a apreciar a vertente substantiva do presente dissídio.

30. Conforme tivemos ocasião de esclarecer, o douto decisor “a quo” recusou aplicar o disposto no artigo 194.º, n.º 1, do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 21/2007/A, de 30 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2015/A, de 17 de Dezembro, por entender que a norma nele inclusa violaria o princípio constitucional, expresso no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, de que “[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.

31. A primeira questão que, perante tal opção decisória, se poderá colocar prende-se, desde logo, com a aplicabilidade do disposto no referido artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, às penas de natureza não criminal e, mais concretamente, às penas disciplinares.

32. Efectivamente, o contexto normativo do referido n.º 4, na economia do artigo 30.º, da Constituição da República Portuguesa, bem como a inserção sistemática desta disposição no diploma que integra, permitem-nos questionar se as penas nele mencionadas são exclusivamente as de natureza criminal ou se nele se contêm, igualmente, sanções de outra natureza.

33. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, tendo, sobre ela, produzido jurisprudência firme reconduzível ao decidido, a título de exemplo, no seu douto Acórdão n.º 368/08, de acordo com o qual:

“A primeira questão que o confronto da citada disposição do Regulamento em análise com o parâmetro constitucional invocado pode suscitar é a da aplicabilidade deste, no âmbito em causa. De facto, estão em apreciação efeitos de um ilícito disciplinar, quando é certo que todo o artigo 30.º da CRP, incluindo o seu n.º 4, tem por objecto os limites das penas criminais e das medidas de segurança. Há que determinar, pois, se a garantia expressa neste preceito constitucional, quanto aos efeitos do ilícito penal, é ou não transponível para outros universos sancionatórios, mormente o contra-ordenacional e o disciplinar.

A jurisprudência deste Tribunal tem-se pronunciado em sentido afirmativo. Assim decidiram os Acórdãos n.º 282/86, n.º 522/95 e n.º 562/2003 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Neste último aresto, após se considerar que «a autonomia do ilícito disciplinar não é suficiente para fundamentar o afastamento, em relação a ele, do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição», concluiu-se que «o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição proíbe igualmente a atribuição às sanções disciplinares de efeitos automáticos que consistam na perda de direitos civis, profissionais ou políticos».

Na doutrina, também se vê sufragada esta orientação. É assim que em GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, Coimbra, 2007, 506, se pode ler, em referência específica ao n.º 4, que «não se vê razão para [o] restringir ao domínio criminal, justificando-se a sua aplicação aos demais domínios sancionatórios, aliás por maioria de razão».

[Fica assim] assente a aplicabilidade do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição (…)”.

34. Resolvida a primeira dúvida potencial e aceitando a aplicabilidade do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, também ao direito sancionatório não criminal, nomeadamente às penas disciplinares, procuraremos apurar se a norma jurídica impugnada, ínsita no n.º 1, do artigo 194.º, do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 21/2007/A, de 30 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 25/2015/A, de 17 de Dezembro, se revela susceptível de violar o princípio constitucional contido naquele preceito.

35. Sobre o conteúdo do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e de entre os vários autores que o têm tratado, começamos por recordar o afirmado por Jorge Miranda, a páginas 685 da Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, 2010, a saber, que:

“O n.º 4 é um dos preceitos que mais dificuldades coloca em termos de interpretação e, por isso, mais tem suscitado a intervenção do tribunal Constitucional. De facto, dizer-se que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, tanto pode significar que o conteúdo da pena criminal não envolve necessariamente aqueles efeitos (p. ex., a suspensão de execução da pena de prisão subordinada ao não exercício de determinadas profissões), como pretenderá, em alternativa, afirmar que conjuntamente com a aplicação de uma pena não devem existir efeitos que impliquem, por forma automática, a perda de direitos civis, políticos, ou profissionais. Porventura será esta segunda interpretação a que melhor se adequa à história do preceito (…)” .

36. Complementando este entendimento, discorrem, igualmente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, páginas 504 e 505, ensinando que:

“O que se pretende é proibir que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecanicamente, independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra «pena» daquela natureza (cfr. AcsTC nºs 442/93 e 748/93). A teleologia intrínseca da norma consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir que, de forma mecânica, sem se atender aos princípios de culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou política do cidadão (cfr. AcsTC nºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, 94/86, 284/89, 748/93, 522/95, 202/00, 562/03 e muitos outros). Impõe-se, pois, em todos os casos, a existência de juízos de valoração ou de ponderação a cargo do juiz (cfr. AcsTC nºs 552/95 e 422/01).

«Perda» de direitos tanto pode querer significar perda definitiva, como incapacidade ou impossibilidade temporária de os exercer. Neste sentido, a suspensão é uma perda temporária. «Direitos civis, profissionais ou políticos» parece querer significar, respectivamente, os direitos que integram a capacidade civil (art....

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