Acórdão nº 514/19 de Tribunal Constitucional (Port, 01 de Outubro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução01 de Outubro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 514/2019

Processo n.º 484/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., notificado da Decisão Sumária n.º 402/2019, que, com fundamento na ilegitimidade do recorrente e na inutilidade do recurso, não conheceu do objeto do recurso de constitucionalidade por aquele interposto, vem reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).

O reclamante, recorrente nos presentes autos, em que é recorrido o Ministério Público, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da decisão do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, proferida em 26 de novembro de 2018, que decidiu julgar verificado o incumprimento, pelo condenado, ora recorrente, das obrigações da liberdade condicional e consequentemente determinou o cumprimento do remanescente da pena de prisão.

O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 3 de abril de 2019, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Deste acórdão o ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC).

2. É a seguinte a fundamentação da decisão sumária ora reclamada:

«5. Tendo em atenção o que consta do requerimento de interposição de recurso, verifica-se que o mesmo tem por objeto a apreciação da constitucionalidade dos artigos 2.º, 56.º, n.º 1, alínea b), 57.º e 64.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na interpretação segundo a qual «cometido um crime durante a liberdade constitucional [é] determinada de forma automática a revogação da liberdade condicional».

Sucede que, perante o tribunal a quo, o recorrente não enunciou a referida questão de constitucionalidade, em termos que lhe permitissem, agora, apresentar-se como parte legítima (cfr. o artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

Com efeito, nas alegações e respetivas conclusões do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra (cf. fls. 82-106), o recorrente faz referência a um conjunto de preceitos de direito infraconstitucional, bem como a normas e princípios constitucionais, que alega terem sido violados pela decisão do tribunal de primeira instância (cf. conclusões 11, 19 e 38 a 41 das referidas alegações), concluindo que «[f]ica assim, aqui, expressamente arguida a inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal a quo fez na Douta Sentença que o Recorrente faz referência das normas legais supra mencionadas, na interpretação contraditória acima referida» (cf. conclusão 42). Contudo, não chega a enunciar qualquer interpretação, reportada aos preceitos indicados como objeto do presente recurso, que repute de inconstitucional.

Ora, pretendendo, in casu, questionar certa interpretação dos referidos preceitos, deveria o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa de tal “arco normativo” que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.

Conforme se escreveu, a este respeito, no Acórdão n.º 269/94 (acessível a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), «[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos.».

Contudo, conforme se referiu, o recorrente, nas alegações em causa, não chegou a enunciar, de forma clara e precisa, a interpretação normativa, reportada aos preceitos enumerados no seu requerimento de interposição de recurso, que pretendia questionar.

Uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o recorrente de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.

Não ocorreu, portanto, durante o processo, a suscitação da inconstitucionalidade da interpretação normativa objeto do presente recurso, de modo a conferir legitimidade ao recorrente para a sua interposição. (cf. artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2 da LTC).

Assim, por ilegitimidade do recorrente não se pode conhecer do objeto do recurso.

6. Por outro lado, ainda se mostrasse verificado o aludido pressuposto do recurso de constitucionalidade, não se poderia conhecer do respetivo mérito, por inutilidade, na medida em que o tribunal recorrido não aplicou a interpretação normativa objeto do recurso enquanto ratio decidendi da sua pronúncia.

Com efeito, o tribunal a quo não aplicou os artigos 2.º, 56.º, n.º 1, alínea b), 57.º e 64.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na interpretação segundo a qual, sendo cometido um crime durante a liberdade constitucional, tal determina, de forma automática, a revogação da liberdade condicional.

Na verdade, o tribunal recorrido começa por afirmar que «[r]esulta das disposições conjugadas dos art.ºs 64.º, 56.º, n.º 1 e 57, todos do Código Penal, que a liberdade condicional concedida é (ao que por ora releva) revogada sempre que, no seu decurso, o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da sua concessão não puderam, por meio dela, ser alcançadas» [itálico acrescentado].

Seguidamente, analisando o caso concreto, refere que o tribunal de primeira instância «revogou a liberdade condicional, com fundamento no disposto na al. b) do art.º 56.º do Código Penal, o qual estatui que a liberdade condicional é sempre revogada quando o condenado cometer crime pelo qual for condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão, não puderam por meio delas ser alcançadas, aplicável por força do art.º 64.º do mesmo diploma substantivo».

Após, tendo concluído que se verifica, no caso dos autos, o primeiro dos pressupostos da revogação da liberdade constitucional (uma vez que o condenado cometeu um crime tentado de roubo no dia 12 de Janeiro de 2017, quando decorria o prazo da liberdade condicional concedida), o tribunal analisou também a verificação do segundo desses pressupostos, referindo que «importa pois apurar se podemos concluir que, ao contrário do decidido, não foram por isso questionadas as finalidades que estiveram na base da concessão da liberdade condicional».

E, depois de fazer uma referência geral aos objetivos visados com a liberdade constitucional e de afirmar que «a prática de um crime pelo qual o condenado venha a ser condenado, não determin[a] a revogação automática da liberdade condicional», o tribunal analisou as circunstâncias respeitantes à condenação do ora recorrente por crime de roubo na forma tentada e demais circunstâncias relevantes do caso, concluindo que «tal condenação é, com efeito, demonstrativa que as finalidades que estiveram na base da concessão da liberdade condicional, não foram alcançadas». E termina referindo o seguinte (cf. fls. 170):

«Tudo conjugado, temos pois que além de não ter aproveitado a oportunidade resultante da liberdade condicional concedida, não interiorizou que a sua vida se deve pautar pela obediência aos mandamentos e por isso arredios à prática de atos penalmente censuráveis que, ademais, não admite ter praticado, mesmo após o trânsito em julgado da respetiva decisão condenatória.

A conclusão, assumida na 1.ª instância, segundo a qual se mostram infirmadas as finalidades que estiveram na base da concessão da liberdade condicional ao arguido, mostra-se, consequentemente, correta.».

Ou seja, não se considerou, pura e simplesmente, que a condenação pela prática de um crime determina automaticamente a revogação da liberdade condicional. O que resulta do exposto é que o tribunal a quo apreciou a situação concreta, tendo concluído, face a um conjunto de circunstâncias, que tal condenação revelava que as finalidades que estiveram na base da concessão da liberdade condicional não foram alcançadas, razão pela qual confirmou a decisão da 1.ª instância no sentido de revogar a liberdade condicional.

Deste modo, atenta a falta de coincidência entre a ratio decidendi subjacente à pronúncia do tribunal recorrido e a interpretação normativa que o recorrente pretende ver sindicada, forçoso é concluir que o presente recurso é, nos termos já referidos, inútil, não devendo, também por esta razão, conhecer-se do seu mérito.».

3. Na sua reclamação (fls. 192-222), o recorrente formula as seguintes conclusões:

«2. O Recorrente discorda da decisão Singular comunicada pela Exmo. Juiz Cons.º do Tribunal Constitucional, razão pela qual exerce o direito de reclamação para a Conferência.

[…]

4. Assim, o Recorrente não concorda com a Decisão sumária do Tribunal Constitucional, decisão que ora Reclama, designadamente, quanto aos pontos 3., 4., 5. uma vez que o Recorrente suscitou a questão da interpretação inconstitucional efetuada pelo Tribunal da 1ª instância tendo, quer nas alegações, quer nas conclusões do Recurso apresentado para o Tribunal da Relação de Coimbra.

5. Conforme entendimento seguido no Douto Acórdão nº 367/94 “Ao...

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