Acórdão nº 572/19 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Outubro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução17 de Outubro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 572/2019

Processo n.º 1383/17

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. A. e B. vêm recorrer para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como “LTC”) do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de julho de 2017, que confirmou a condenação de cada um deles como coautor de crimes de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º, com referência aos artigos 28.º e 386, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal. Com o presente recurso visam a fiscalização da constitucionalidade dos artigos 382.º e 28.º, n.º 1, do citado Código na interpretação segundo a qual alguém que não seja funcionário, tal como definido na alínea b) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, pode ser condenado pelo crime de abuso de poder, quando essa qualidade de funcionário se verifique nos seus comparticipantes e lhe seja estendida, em especial, por violação do princípio da legalidade previsto no artigo 29.º da Constituição, mas também dos princípios do Estado de direito democrático, da constitucionalidade, da independência dos tribunais, da prevalência da lei, da segurança jurídica e do justo procedimento.

2. Admitidos ambos os recursos e subidos os autos, foram as partes notificadas para alegar.

2.1. Os recorrentes apresentaram uma única alegação, que concluía nos seguintes termos:

«1ª) O crime de abuso de poder é um crime específico, é um crime de função e, por isso, um crime próprio, que ocorre quando o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede.

2ª) Para que se preencha o tipo objetivo de ilícito é necessário que o funcionário atue na veste de funcionário, que aja nessa qualidade.

3ª) Tem que existir, necessariamente, uma conexão direta entre os atos (praticados por ação ou por omissão) desse funcionário e a sua condição e qualidade de funcionário.

4ª) É por isso que o artigo 382º do Código Penal faz referência ao abuso de poderes ou violação de deveres inerentes às suas funções.

5ª) Os arguidos A., Contabilista Certificado, e B., empresário, não são funcionários públicos, logo não têm os poderes, as funções ou os deveres que sobre estes impendem.

6ª) Sendo o crime de abuso de poder um crime que depende das qualidades funcionais do seu agente, logo se extrai que os recorrentes, que não reúnem tal qualidade de funcionário, nunca poderiam ter praticado o tipo ilícito criminal pelo qual foram condenados.

7ª) Não sendo os recorrentes funcionários também não lhes estavam confiados quaisquer poderes ou deveres funcionais dos quais os mesmos pudessem, aliás por impossibilidade natural, ter abusado, violado ou omitido.

8ª) A tutela do bem jurídico salvaguardado pelo tipo legal de crime de abuso de poder é confiada a um funcionário, razão pela qual o sujeito ativo do tipo de ilícito criminal terá de deter a qualidade de funcionário na sua definição constante do art.º 386.º, do Código Penal.

9ª) Ainda que à luz do disposto no art.º 28.º, n.º 1, do Código Penal, não é possível que um não funcionário seja co-autor deste tipo objetivo de ilícito na medida em que nunca lhe foram conferidos, confiados ou investidos quaisquer poderes ou deveres de funcionário dos quais possa ter abusado ou violado.

10ª) Sendo a culpa sempre uma vontade antijurídica individual e intransmissível, um não funcionário, tal como os aqui recorrentes, nunca poderia ter atuado com dolo de violar os deveres ou de abusar dos poderes de funcionário quando não os detinham e nos quais não foram investidos.

11ª) Não se demonstra preenchido o tipo subjetivo de ilícito exigido pelo art.º 382.º em causa, sendo certo que, e sem conceder quanto ao atrás referido, o art.º 28.º apenas poderá comunicar aos demais a ilicitude do facto e não a culpa específica e inerente à qualidade de funcionário.

12ª) A conduta dos recorrentes não integra a prática de qualquer tipo legal de crime, nomeadamente o crime de abuso de poder, sendo certo que qualquer outro entendimento, tal como aquele plasmado no Acórdão, não encontra na lei penal qualquer descrição típica alternativa que permita enquadrar penalmente a posição dos arguidos sem violar o princípio da legalidade que decorre do artigo 1.º do Código Penal e do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

13ª) É INCONSTITUCIONAL o disposto no artigo 382.º e 28º do Código Penal, quando interpretado no sentido de que alguém que não seja funcionário, tal como definido no artigo 386º do Código Penal, pode ser condenado pelo crime de Abuso de Poder, quando essa qualidade - funcionário - se verifique nos seus comparticipantes, podendo ser-lhes estendida.

14ª) Esta interpretação viola expressamente o Artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

15ª) E viola frontalmente, entre outros, o art. 2.º da C.R.P., que consagra o princípio fundamental do Estado de Direito, a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais, concretizado no subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado no art. 3.º, n.º 3 da C.R.P.; no subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça, consagrado nos arts. 20.º e 205.º e ss. da C.R.P.; no subprincípio da prevalência da lei; no subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos; e no subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento.

16ª) INCONSTITUCIONALIDADE que deve ser declarada.

17ª) Não podendo aplicar-se o disposto no artigo 28º do Código Penal ao crime de Abuso de Poder, e não sendo os recorrentes funcionários, nos termos definidos no artigo 386º, para poder ser-lhes imputada a prática do Crime de Abuso de Poder, p.e p. no artigo 382º do Código Penal, devem os mesmos ser absolvidos da prática dos crimes de Abuso de Poder por que foram condenados.».

2.2. O Ministério Público, ora recorrido, contra-alegou, sustentando a conformidade constitucional da interpretação normativa acolhida na decisão recorrida, mormente no que se refere à alegada violação do princípio da legalidade, salientando, entre o mais:

«14.º

Desde logo, como devidamente salientado pelo Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação do Porto, os recorrentes não explicitam nunca, nem concretizam «… em que termos e por que é que, no caso sub judice, esses princípios e subprincípios [por eles indicados] foram desrespeitados pelo tribunal a quo e [nessa medida] o tribunal de recurso não se pronuncia sobre afirmações abstractas».

Com efeito, os recorrentes limitaram-se a citar subprincípios e disposições constitucionais, tais como o princípio fundamental do Estado de Direito, o subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, o subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça, o subprincípio da prevalência da lei, o subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos e, por último, o subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento.

Não se vê, porém, como qualquer destes princípios ou subprincípios se possa ter mostrado violado pelo Acórdão recorrido, nem os recorrentes indicam como isso terá acontecido.

[…]

27º

Ora, no caso dos autos, não estamos perante nenhuma situação em que o crime de abuso de poder, e a respetiva sanção, não estivessem previstos na lei à data da prática dos factos pelos quais os ora recorrentes, e os restantes co-arguidos, vieram a ser punidos.

Por outro lado, a descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que depende em concreto a sua punição encontra-se feita, na lei penal, de modo a tornar objetivamente determináveis, sem qualquer ambiguidade, os comportamentos proibidos e sancionados.

A mesma lei penal especifica, com efeito, suficientemente, os factos que constituem o tipo legal de crime em apreciação, como sobejamente se viu ao longo das presentes contra-alegações, tipificando devidamente as respetivas penas.

Por outras palavras, o legislador não utilizou, relativamente ao crime de abuso de poder, «fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime» e, muito menos previu «penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto».

28º

Também a doutrina nacional vai no sentido da posição aqui acolhida.

Por exemplo, Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição anotada, 2010, págs. 672), referem, a propósito do princípio da tipicidade:

A terceira questão tem que ver com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Assim, dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que acções e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas “normas penais em branco”, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da...

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