Acórdão nº 614/19 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Outubro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução23 de Outubro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 614/2019

Processo n.º 737/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. No âmbito do processo n.º 433/16.0PBVIS, que correu os seus termos no Juízo Central Criminal de Viseu, foi submetido a julgamento A. (o ora Recorrente), a quem foi imputada a prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.os 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal. Realizada a audiência, foi aquele arguido condenado, em primeira instância, por acórdão de 15/05/2018, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva, pela prática de um crime de roubo simples, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na forma consumada.

1.1. O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, ali invocando, inter alia, ser “[…] ilegal e inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147.º do Código de Processo Penal, mesmos nos casos em que não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação” (cfr. conclusão 35.ª), o que reiterou em resposta ao parecer do Ministério Público, perante o Tribunal da Relação, nos termos do artigo 417.º do CPP.

1.1.1. No Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido acórdão, datado de 06/02/2019, negando provimento ao recurso. Da respetiva fundamentação consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

1 – Do reconhecimento do arguido:

Não se duvida de que a prova por reconhecimento de pessoas tem que obedecer ao formalismo estabelecido no artigo 147.º do C. Processo Penal, sob pena de estarmos perante um meio de prova proibido e portanto, absolutamente inválida a prova dele resultante (cfr. n.º 7 do artigo citado).

No entanto, tal diligência processual só se justifica, em audiência de julgamento, em situações específicas que não se verificam nos autos.

Com efeito, o recorrente, como bem é referido na resposta do Ministério Público, “estava previamente identificado, investigado e assumido como arguido, enquanto autor dos factos descritos na acusação – vide, para além do mais, o auto de notícia por detenção de fls. 2 e 2-v; aditamento n.º 2 de fls. 7, elementos de fls. 149, constituição de arguido de fls. 150, TIR de fls. 154; auto de interrogatório de arguido de fls. 155 e verso”.

Não havia, pois, salvo o devido respeito pelo que é alegado pelo recorrente, necessidade de seguir o disposto na norma ora em causa.

Quando uma testemunha, em audiência, diz que viu um arguido assumir certos comportamentos, apela à sua memória e ao que nela retém quanto à figura deste e, portanto, o relato que faz implica a identificação da pessoa que viu num certo local e num determinado contexto, com a pessoa que vê estar a ser submetida a julgamento.

Mas isto não significa um reconhecimento que deva obedecer ao disposto no artigo 147.º, do C. Processo Penal, tratando-se antes e apenas de um segmento do próprio depoimento, a incluir e valorar no âmbito da prova testemunhal.

A não se entender assim, inutilizar-se-ia o valor da prova testemunhal, por não poder valer autonomamente isto é, sem a prova por reconhecimento, sempre que uma testemunha dissesse ter presenciado o arguido a praticar determinado facto, designadamente nos casos, como o dos autos, em que a vítima não voltou a ser confrontada com o arguido antes da audiência de julgamento, sendo completamente alheia aos motivos que deram origem a tal realidade.

Assim sendo, entendemos que, no caso presente não existe nos autos prova por reconhecimento de pessoas pelo que, não pode ter sido violado o artigo 147.º do C. Processo Penal e não foi valorado meio de prova proibida pelo que, podemos acrescentar, também não se mostram violados os artigos 8.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, in fine, 32.º, n.os 1 e 8, e 204.º da Constituição da República Portuguesa, nem o artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Com efeito, quando, em audiência de julgamento, uma testemunha relata os atos que viu o arguido praticar, não está a proceder ao reconhecimento deste, mas unicamente a prestar depoimento, a valorar apenas, no âmbito da prova testemunhal, não fazendo sentido, neste contexto, invocar a inobservância das regras impostas no artigo 147.º, do CPP, como forma de invalidar a prova testemunhal produzida.

Em casos como o que, neste momento, ocupa a nossa atenção o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do artigo 127.º, do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o artigo 147.º do mesmo diploma.

Assim, no caso em apreço, na audiência existiu a mera identificação do arguido por uma testemunha, meio de prova submetido ao princípio do contraditório (artigo 327.º, 2, do CPP), não tendo sido sentida pelo tribunal a necessidade de recorrer ao meio probatório autónomo intitulado de «Reconhecimento de pessoas».

Logo, trata-se de uma prova não proibida, a valorar de harmonia com o princípio da livre convicção – ver, neste sentido, o Acórdão do TRC, de 28/2/2018, Processo n.º

196/13.1PACCB.C2 […9: ‘(…) Na verdade, quando ao assistente ou a uma testemunha, ofendido ou não, é solicitada a confirmação de ser o arguido presente na audiência é o autor do crime, não estamos perante um reconhecimento de pessoas presencial, mas apenas e só perante um depoimento (cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, obra coletiva, 2014, Almedina, pág. 615).’

[…]

Afirma o recorrente, de forma implícita, que o disposto no artigo 147.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, obriga a que qualquer identificação de arguido feita em audiência siga os trâmites e os requisitos do disposto no artigo 147.º, n.os 1 e 2, do CPP sob pena de nulidade cominada no n.º 7 desse mesmo preceito legal.

É claro que isto olvida um facto simples: um “reconhecimento”, assenta num extrato de depoimento (um “testemunho”, portanto) ou declaração, Mas os dois atos (reconhecimento e depoimento) são diferenciados pela especial solenidade da sua execução e pelas especiais condições em que o reconhecimento é realizado. Aquele pedaço de “testemunho” ou ‘declaração’, assente na memória e numa simples declaração (de identificação positiva ou não) ganha autonomia, desprende-se do depoimento na estrita medida em que o legislador lhe dá uma diferente força probatória. Tanto que o erige à categoria de meio de prova distinto do testemunho ou da declaração.

A jurisprudência portuguesa, tem vindo a encontrar dificuldades face à constatação de que o regime normativo da audiência de julgamento se mostra de difícil compatibilidade com o formalismo previsto no artigo 147.º do Código de Processo Penal, claramente pensado para a fase de inquérito ou instrução.

Para além das naturais dificuldades práticas que a imposição desse formalismo em audiência acarreta na sua execução, suscita-se a dúvida sobre o alcance da necessidade da sua realização e sobre a exclusividade dessa mesma realização.

Naturalmente que se impõe uma tomada de posição do tribunal de julgamento no sentido de considerar necessária e adequada a realização de um ‘reconhecimento’, ao qual será atribuída uma específica e autónoma força probatória, ou optar pela simples identificação em depoimento.

Por isso que nem todas as “identificações” realizadas em audiência têm que revestir a forma de reconhecimento nem o artigo 147.º do Código de Processo Penal obriga a que todos os depoimentos sejam interrompidos no momento da ‘identificação’ para que passem, naquele extrato de ‘testemunho’, a revestir a forma de reconhecimento.

Naturalmente que essa “identificação” deverá ser apreciada como um mero depoimento ou meras declarações, que não como de um reconhecimento se tratasse. Isto é, não houve “reconhecimentos” em audiência, sim mera apreciação de depoimento prestado.”

E não se diga, como defende certa doutrina, que o “homem médio”, enquanto testemunha, fica sugestionado para responder afirmativamente quando lhe é dito “olhe para trás, reconhece esse senhor?”, ao ver, no centro da sala de audiências, a pessoa do arguido.

O quotidiano dos tribunais, salvo sempre o devido respeito, não confirma tal conclusão, sendo inúmeras as vezes em que a testemunha não consegue identificar o arguido em audiência de julgamento.

Note-se que o legislador não proíbe que uma testemunha possa identificar, em audiência de julgamento, o arguido.

E sendo essa identificação cabal, inócuo é realizar um reconhecimento conforme o disposto no artigo 147.º, do CPP.

Aliás, seria bizarro que alguém – deixando, até, de lado a vítima – tivesse presenciado um facto e não pudesse, de um modo espontâneo, em tribunal, identificar o arguido como sendo a pessoa que tinha visto praticar os factos em questão.

Por conseguinte, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha violado qualquer das garantias de defesa do arguido com previsão quer no Código de Processo Penal quer na Lei Fundamental, em sede de, respetivamente, validade da identificação do arguido e da interpretação dada ao citado artigo 127.º, no sentido de que aquela é admissível tendo em consideração o princípio da livre apreciação da prova.

[…]

A alegação do recorrente assenta, por um lado, na invalidade do “reconhecimento” feito em julgamento […].

Quanto à mencionada invalidade, nada temos a acrescentar quanto a essa parte do objeto do recurso, face às...

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