Acórdão nº 667/19 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução13 de Novembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 667/2019

Processo n.º 143/2016

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Arbitral constituído junto do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente a Autoridade Tributária e Aduaneira («AT») e recorrido o A., Lda., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, que julgou procedente o pedido de declaração de ilegalidade de vários atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado («IVA») e dos respetivos juros compensatórios, relativos aos anos de 2010 a 2013.

2. O ora recorrido é uma sociedade por quotas de capitais privados, com fins lucrativos, que exerce a sua atividade económica na área da prestação de cuidados de saúde em unidade hospitalar. Apresentou a declaração de início de atividade em 1999, indicando a realização de operações isentas de IVA ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro, posteriormente alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de junho, e doravante designado «Código do IVA»). Em 2000, apresentou uma declaração de alteração de atividade, através da qual optou por exercer o direito à renúncia à isenção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA. Findo o período mínimo de cinco anos, durante o qual se encontrava obrigado a permanecer neste regime, o recorrido não manifestou a intenção de beneficiar novamente do regime de isenção, nos termos do n.º 3 do artigo 12.º do Código do IVA.

A partir de 2004, o recorrido celebrou acordos com subsistemas de saúde públicos, com a Administração Regional de Saúde do Norte e com várias entidades públicas empresariais integradas no Serviço Nacional de Saúde. Ao abrigo desses acordos prestou serviços pelos quais faturou aos organismos públicos valores líquidos correspondentes a uma percentagem (em média) não inferior a 36% da sua faturação nos anos de 2010 a 2013.

Em 2014, a recorrente promoveu a realização de uma ação inspetiva que visou os exercícios do recorrido de 2010, 2011, 2012 e 2013.

No âmbito da referida inspeção, a recorrente procedeu à soma dos valores suportados pelos beneficiários dos cuidados de saúde prestados ao abrigo dos acordos celebrados com entidades públicas, tendo estimado que os mesmos corresponderiam a cerca de 45% da faturação do recorrido.

Considerando que «a percentagem de operações realizadas pelo A. ao abrigo das convenções e acordos com subsistemas de saúde públicos, com a AR[S] e com hospitais públicos, é representativa de uma grande parte do valor faturado, logo os custos dos serviços são assumidos também em grande parte por entidades públicas», a recorrente concluiu que o recorrido tinha deixado de reunir condições para poder exercer o direito a renunciar da isenção de IVA e, bem assim, que os efeitos dessa renúncia já haviam cessado no momento em que se iniciara o período temporal visado pela ação inspetiva. Assim, a recorrente propôs a correção a favor do Estado do imposto deduzido a mais durante esse período, considerando abrangidas pela isenção todas as operações realizadas no âmbito da «atividade de hospitalização e a assistência médica, bem como as prestações de serviços com elas estreitamente relacionadas», independentemente de terem ou não sido prestadas ao abrigo de convenções e acordos celebrados com subsistemas de saúde públicos, «ficando sujeitas a IVA outras atividades exercidas pelo A. que não se enquadram na isenção do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA» (tais como, inter alia, as prestações de serviços do bar e refeitório, o fornecimento de dormidas e refeições aos acompanhantes, as comissões de venda dos aparelhos auditivos, ou a prestação de serviços de podologia).

Notificado dos atos de liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios, bem como das demonstrações de acerto de contas, relativos aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013, praticados pela AT na sequência desta ação inspetiva, o recorrido requereu junto do CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado «RJAT»).

O Tribunal Arbitral julgou procedente o pedido de declaração de ilegalidade de tais atos, juízo que se apoiou nas seguintes conclusões:

«a. O âmbito subjetivo do direito a renunciar à isenção por parte dos estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, determina-se por referência a critérios do Direito da União Europeia, não podendo ser corretamente definido por referência à Lei de Bases da Saúde;

b. O termo "sistema nacional de saúde", constante do artigo 12.º, n.º 1, do CIVA, tem de interpretar-se de acordo com o critério imposto pelas normas aplicáveis da Diretiva IVA;

c. Os termos "serviço nacional de saúde", utilizado na verba 2.7 da Lista I anexa ao CIVA e no artigo 12.º do CIVA, também não deve ser interpretado no sentido técnico;

d. De facto, a noção de Sistema Nacional de Saúde para os efeitos constantes do artigo 12.º do CIVA é uma noção de Direito Fiscal e deve interpretada de acordo com a Diretiva IVA, abrangendo os hospitais, clínicas, dispensários e similares pertencentes a pessoas coletivas públicas e a instituições privadas que se integrem na chamada "economia social", como sejam as Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS), as Misericórdias e outras entidades de escopo não lucrativo;

e. Esta noção não abrange sociedades comerciais, mesmo que estas tenham celebrado acordos com o Estado para a prestação de alguns cuidados de saúde;

f. Assim sendo, mesmo após a celebração desses acordos, as sociedades em causa continuam a poder exercer a renúncia à isenção, se antes o não tiverem feito, ou a manter-se no regime de tributação, se tiverem para o efeito exercido previamente o direito à renúncia;

g. A Requerente configura-se como uma entidade de direito privado e tem finalidade lucrativa;

h. Nestes termos, conclui-se que a Requerente não integra o Sistema Nacional de Saúde;

i. Devem apenas excluir-se do âmbito da renúncia à isenção em apreço, as atividades que não sejam prestadas por organismos de direito público ou organismos em condições sociais análogas às que vigoram nos organismos de direito público;

j. Em nosso entendimento, para efeitos de se determinar o que são estabelecimentos hospitalares que exercem a sua atividade em condições sociais análogas às de um organismo público, é necessário que sejam tomados em consideração “vários elementos”, sendo o facto de os custos das prestações serem parcialmente assumidos por organismos públicos apenas um dos elementos a ter em consideração para o efeito;

k. O conceito de condições sociais análogas implica necessariamente o apelo às condições sociais, ou seja, ao facto de os fins prosseguidos serem eminentemente sociais (como é o caso dos organismos públicos), o que igualmente não é o caso da Requerente;

l. Por outro lado, será de rejeitar que a atividade exercida pela Requerente consubstancie qualquer espécie de pressão concorrencial sobre estabelecimentos similares públicos, uma vez que, como se nota, os preços atualmente praticados são tabelados por Portaria, sendo o IVA devido pelos mesmos incluído por dentro do preço, pelo que não é por passar a isentar de IVA as operações que os utentes passam a optar pelos hospitais públicos em seu detrimento (…).»

Junto do Tribunal Arbitral, a AT requereu que a questão fosse submetida à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos previstos no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tendo decidido aquele tribunal não proceder ao reenvio prejudicial, uma vez que «não subsistem dúvidas de interpretação sobre qualquer uma das normas em presença, pelo que se impõe a este Tribunal decidir em conformidade com a lei aplicável, nacional e comunitária, dando plena aplicação a ambas».

3. Inconformada, a AT interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, com vista à apreciação de duas questões de constitucionalidade, enunciadas nos seguintes termos:

«1. Visa-se através do presente recurso, antes de mais, que seja efetuada a fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade, julgando-se inconstitucional a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA, por violação do Princípio da Igualdade e do Direito à Saúde, respetivamente plasmados nos artigos 13.º e 64.º da CRP, quando interpretada no sentido de que podem renunciar à isenção, por não se integrarem no conceito de “instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde”, as instituições privadas que prestem serviços de saúde e que estabeleçam acordos com subsistemas de saúde públicos, liquidando IVA nas prestações de serviços de saúde que realizem, conforme concluído pelo Tribunal Arbitral.

(…)

5. Visa-se, ainda, a fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade da norma constante do 3.º parágrafo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na interpretação que dela faz o Tribunal Arbitral, isto é, quando interpretada no sentido em que não existe obrigatoriedade de reenvio prejudicial quando não exista recurso jurisdicional de direito interno da decisão de um órgão jurisdicional nacional, como sucede com as decisões arbitrais, sempre que esteja em causa um questão relativa à interpretação do direito da União e seja suscitada perante esse órgão jurisdicional.»

4. Admitido o recurso, foram as partes notificadas, nos...

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