Acórdão nº 711/19 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução04 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 711/2019

Processo n.º 430/2019

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, em que são recorrentes o Ministério Público e A., foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 8 de março de 2019.

2. Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, a quem imputou a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, de um crime de homicídio por negligência grosseira e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, todos em concurso efetivo e como reincidente.

Durante a audiência de julgamento, o Tribunal comunicou ao arguido a possibilidade de virem a ser dados como provados factos que implicariam uma alteração substancial da matéria de facto vertida na acusação pública, notificando-o e ao Ministério Público para que declarassem se consentiam na continuação do julgamento pelos factos novos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal. O Ministério Público deu o seu acordo, ao passo que o arguido, aqui recorrido, não o deu.

Concluído o julgamento, veio a ser proferido o acórdão ora recorrido, tendo o Tribunal de 1.ª instância recusado a aplicação da norma do artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no segmento em que impede a extinção da instância, com a consequente impossibilidade de que os factos novos que não podem ser autonomizados do objeto do processo sejam considerados num novo procedimento criminal, invocando para tal efeito a ofensa ao princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º), mormente ao seu dever constitucional de tutela de direitos, liberdades e garantias (artigo 9.º, alínea b)), ao princípio da proporcionalidade (artigo 18.º n.º 2), ao direito à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º) e ao princípio do primado e independência dos tribunais na aplicação da justiça penal (artigos 202.º e 203.º da Constituição).

Em consequência de tal recusa de aplicação, o Tribunal não conheceu do mérito da acusação pública, na parte que dizia respeito ao crime de homicídio negligente, absolvendo da instância o arguido com fundamento em impossibilidade legal superveniente quanto a esta imputação, determinando a separação de processos quanto a tal matéria e remessa dos autos ao Ministério Público para que seja aberto inquérito quanto aos factos novos apurados. O arguido foi condenado pelas demais imputações numa pena única conjunta de três anos e quatro meses de prisão.

Com interesse para os autos, pode ler-se no acórdão recorrido:

«O tribunal entendeu, pois, em sede de decisão de facto que o arguido, tendo previsto que a sua conduta poderia causar a morte ou lesões graves de terceiros não se coibiu de levar a cabo a mesma, conformando-se com a possibilidade de verificação de tal resultado (morte ou lesões graves).

Tal decisão de facto implicaria, em sede de decisão de direito ou final, a condenação do arguido como autor, com dolo eventual, de um crime de homicídio doloso p. e p. no supracitado artº 131 e sustentar-se-ia em facto que não constava da acusação

O artº 1 alínea f) do C. P. Penal define como «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;

Estamos, assim nos autos, perante uma situação de “alteração substancial de factos”.

Sobre a epígrafe, “da alteração substancial de factos”, o artº 359 do C. Penal, na redação vigente e que lhe foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, estabelece o seguinte:

“1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”

A redação anterior de tal preceito era a que adiante se transcreve:

1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.

2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

3 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.

Nos nossos autos o arguido após a comunicação a que alude o nº 3 da norma em apreço manifestou a sua oposição ao prosseguimento dos autos/julgamento pelos novos factos.

Os factos novos apurados não são claramente autonomizáveis em relação ao objeto dos autos no que concerne à acusação pelo crime de homicídio negligente.

Os novos factos, porquanto consubstanciam alteração substancial não podem ser tidos em conta para o efeito de condenação nestes autos nem podem, de acordo com a norma vigente, determinar a extinção da instância com posterior comunicação ao Mº. Pº. para que instaure novo inquérito.

Do exposto resulta que, ao contrário do que era prática judicial comum e jurisprudência maioritária, o tribunal não pode agora abster-se de conhecer do mérito da acusação, absolver o arguido da instância e remeter certidão dos autos ao Mº. Pº. para que instaure novo inquérito.

Tal solução implica que este tribunal, para dar cumprimento ao artigo em causa, se veja na contingência para efeitos de apreciação da conduta do arguido pelos factos (sua ação) que estiveram na origem da morte de Luís Silva de condenar aquele como autor de um crime de homicídio negligente (grosseira ou não, na hipótese de se entender que só é grosseira a negligência consciente e face ao facto não provado em d)) e não por homicídio doloso.

A diferença entre ambas as soluções é, como é claro, descomunal e não só ao nível da sanção (moldura penal).

Tal solução afigura-se-nos manifestamente desadequada e injusta.

Não por não permitir a condenação do arguido nestes autos pelo crime que (conforme se apurou) efetivamente cometeu. Os respetivos direitos de defesa consagrados quer na legislação penal e processual penal quer constitucionalmente obrigam a tal o que não se discute, mas por, também, não permitir a (re)abertura de inquérito para o Mº. Pº. pronunciar sobre os novos factos com o seguimento dos ulteriores termos processuais com (se for o caso) dedução de nova acusação, instrução e novo julgamento (necessariamente por um tribunal com composição diversa deste - outros juízes).

Tal solução/proibição implica que este tribunal tenha que decidir com uma realidade que não apurou e por isso distorce a verdade material.

**

Impedir o tribunal de firmar a verdade dos factos e/ou obrigar o mesmo a decidir com factos que sabe não corresponderem à verdade àquela é distanciar demais o direito da realidade e consequentemente da justiça material.

A solução normativa consagrada ignora e obstaculiza a possibilidade de se lograr obter uma tutela jurídica real e efetiva dos direitos das vítimas, a qual no nosso caso inclusive perdeu a vida em consequência da ação que se aprecia e não pôde, por si, exercer qualquer direito, competindo ao Estado, em primeira linha, garantir que o seu decesso não fique impune ou seja alvo de uma decisão ficcionada com base numa realidade diversa da ocorrida.

Tal solução distância os tribunais da realidade, da justiça material e não é compreensível para os destinatários da justiça. O povo, a sociedade, todos nós em nome do quem, de acordo com a constituição da República, atuam os tribunais.

Uma coisa, reafirma-se, é ao tribunal estar vedado, sem garantir ao arguido que utilize e esgote todos os meios de defesa, que utilize os novos factos e imponha ao arguido uma condenação com base em factos /imputação que o mesmo não teve hipótese de se defender oportunamente e outra, completamente distinta, é obrigar os tribunais a distorcer a realidade e/ou atuar com base contrária à sua convicção e independência condicionada de forma férrea e inultrapassável pela acusação.

Neste sentido, p. ex., José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho, in “Alteração Substancial dos Factos em Processo penal”:

“Num golpe de mágica, sem que nada o justificasse, a reforma de 2007 mudou o paradigma: ordena-se o prosseguimento dos autos sem valorar os factos novos.

Esta solução não tem paralelo nos ordenamentos jurídicos (alemão e austríaco) que mais influenciaram o Código de 1988.

(...)

Os ganhos obtidos em...

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