Acórdão nº 43/20 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Janeiro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução16 de Janeiro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 43/2020

Processo n.º 938/2019

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é reclamante A. e reclamado o Município de Odivelas, o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho de 15 de julho de 2019, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.

2. O aqui reclamado propôs ação declarativa de condenação contra o aqui reclamante, pedido o reconhecimento da propriedade sobre determinado imóvel por este ocupado, a sua devolução e respetiva desocupação, e ainda o pagamento de indemnização pela ocupação do imóvel e pelos danos nele causados.

O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação parcialmente procedente, declarando o autor proprietário do imóvel em questão, condenando o réu a desocupá-lo e a restituí-lo, e ainda a pagar uma indemnização pela ocupação indevida.

Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, podendo ler-se nas conclusões com que encerrou a sua alegação:

«I. Conclusões

I - O Recorrente foi surpreendido pelo facto de ter uma sentença proferida, cujo se recorre, que julga a presente ação procedente, decidindo em:

a) Declarar que a autora é dona e legítima proprietária da fração autónoma a que corresponde o r/c .. do prédio urbano sito no … da praceta …, em Odivelas;

b) Condenar o R. a restituir ao A. a fração autónoma acima identificada, livre de ónus e devoluta de pessoas e bens;

c) Condenar o R. ao pagamento de uma indemnização destinada a compensar o Autor pela a ocupação ilícita do imóvel, cuja liquidação se remete para execução de sentença;

d) Absolver o R. do demais peticionado.

II - O recorrente considera erradamente considerado provado os factos 6., 11. e 16 e foi consideramente erradamente como factos não provados os 1.º a 5, pois desde sempre o agregado familiar do arrendatário foi constituído pelo próprio e por B., que com ele vivia em situação análoga à dos cônjuges, bem como desde o ano de 2009 que o Recorrente vivia com os pais e tal não foi tido em conta.

III - É falso que o A. não tenha reconhecido o direito do Recorrente ocupar o locado, pois sempre recebeu rendas ao Recorrente desde o ano de 2009 até dezembro de 2015, tendo a mãe do Recorrente falecido em dezembro de 2014, encontrando-se o Recorrente a efetuar depósitos autónomos a favor do A. desde Dezembro de 2015.

IV - Tendo desta forma sido reconhecido ao Recorrente o direito de ocupar o referido locado, ora a fração autónoma que corresponde o R/C do prédio urbano sito no … da Praceta …, em Odivelas esteve na posse dos falecidos pais do aqui Réu desde 1996 até ao falecimento dos mesmos, sendo estes arrendatários do referido bem imóvel.

V - Desde o ano de 2009 que o Recorrente reside de forma permanente no imóvel supra referido, sendo aí o seu lar, cfr., atestado emitido pela Junta de freguesia de Odivelas em 29-06-2017, cujo este pertencia ao agregado familiar dos pais do Recorrente, Sr. C., que faleceu em 21-07-2011 e Sra. B., que faleceu em 1-12-2014, sendo que foi o Recorrente que cuidou de seus pais até estes falecerem, tendo os mesmos estado acamados, prestando-lhes cuidados continuados, cfr. declaração emitida pelo ISS,IP em 2013-03- 01 que atesta que era o Recorrente que representava a sua falecida mãe para auferir pensão que foi junto como Doc.2 e Contrato de prestação de serviços pelo Recorrente Junto da RNCCI em 1 9 de Setembro de 2011, que se juntou como Doc.3.

VI - O Recorrente quando foi residir com os seus pais, no ano de 2009, dirigiu-se com estes Junto da Divisão Habitação desse Município e comunicou que pertencia a tal agregado familiar, pelo que não se compreende a razão pela qual a sentença não considera que este tem direito a permanecer no locado, mediante o pagamento mensal de renda, conforme o tem efetuado desde o ano de 2009 até à presente data, cfr. Docs. 4 a 23 que se juntaram com a contestação, uma vez que os falecidos pais do Recorrente chegaram a um ponto que não tinham capacidade para tal, pois tinham reduzidos rendimentos mensais, que se mostravam insuficientes para custear até a sua medicação.

VII - Desta feita, a considerar, conforme a A. refere, que o contrato de arrendamento caducou, haverá uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, uma vez que a A. tinha e tem o perfeito conhecimento da data do óbito dos titulares do contrato de arrendamento e continuaram a emitir recibos de renda e a recebe-la, pelo que tacitamente considera-se o reconhecimento inequívoco da transmissão do arrendamento para o Recorrente.

VIII - Mais acresce que o Recorrente encontra-se inscrito do Centro de Emprego de Loures - Odivelas, cfr. Doc.24 que se juntou com a contestação, e o único rendimento mensal que este aufere é o rendimento social de inserção social no valor de € 162,70, cfr. Doc.25 que se juntou com a contestação, pelo que nem sequer tem condições económico-financeiras para ir para outro imóvel pagar renda.

IX - Ao Recorrente desde o mês de dezembro de 2015 foi-lhe vedado o recebimento pela A. da renda mensal, pelo que veio informar a A. que se encontra a efetuar depósitos autónomos mensais para pagamento da renda mensal, cfr. Doc.26 que se juntou.

X - A Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que entrou em vigor em 27 de junho de 2006, revogou o Decreto-Lei n.º 320-B/90, de 15 de Outubro (R.A.U.), e estabeleceu o novo regime do arrendamento urbano (NRAU), ora a nova disciplina introduzida pelo NRAU, o qual é regulamentado por seis novos decretos-lei e duas portarias, alterou substancialmente o regime substantivo e processual da relação arrendatícia, entre as inúmeras alterações que o NRAU introduziu na disciplina do arrendamento urbano está, indubitavelmente, o regime sobre a transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário habitacional.

XI - De acordo com o preceituado na alínea d) do art. 1051.º do Código Civil, o contrato de locação, tendo natureza intuitus personae, «caduca por morte do locatário», salvo convenção escrita em contrário (art. 1059.º n.º 1 do Código Civil), porém, e reportando-nos apenas aos contratos de arrendamento para a habitação, a regra da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário sofre um importante regime de exceção, constante dos arts. 1106.º e 1107.º do Código Civil.

XII - Com efeito, nos termos do n.º 1 do art. 1106.º do Código Civil, o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário se lhe sobreviver alguma das pessoas mencionadas nas suas alíneas. Nos termos do referido n.º 1, a ordem por que se defere o direito à transmissão do arrendamento para a habitação, por morte do arrendatário, é a seguinte:

a) cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano;

b) pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.

XIII - De acordo com o n.º 2 do art. 1106.º do Código Civil «... a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho, ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano».

XIV - Preceitua, pois, o n.º 2 do art. 1106.º do Código Civil que cada um dos sujeitos mencionados nessa disposição legal beneficiará da transmissão desde que não exista quem lhe prefira. Isto é, o n.º 2 estabelece uma hierarquização dos beneficiários do direito à transmissão do arrendamento, com base numa regra de prioridade semelhante à fixada no art. 2134.º do Código Civil para as classes de sucessíveis.

XV - Como vai referido, o n.º 2 do normativo constante do art. 1106.º do Código Civil fixa a ordem por que se transmite o direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional.

XVI - Saliente-se que o n.º 1 do art. 1106.º do Código Civil suprimiu a expressão “primitivo arrendatário” constante do revogado art. 85.º do R.A.U. Neste diploma (R.A.U.) o transmitente era o primitivo arrendatário, o que implicava que a transmissão só se processava uma vez, ou duas vezes no caso de ao primitivo arrendatário defunto suceder o cônjuge sobrevivo deste ou a pessoa que com ele vivia em união de facto, situação em que o direito ao arrendamento se transmitia de novo, por morte destes, aos parentes ou afins na linha reta do primitivo arrendatário. Dispõe agora o n.º 1 do art. 1106.º que «o arrendamento não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: ...». Quer isto significar que, transmitindo-se o direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional, o transmissário sucede no complexo de direitos e deveres do anterior arrendatário, transmitindo-se o arrendamento por morte do novo arrendatário aos beneficiários identificados no n.º 1 do art. 1106.º do Código Civil, e assim sucessivamente. Ou seja, com o novo regime constante do art. 1106.º do Código Civil, deixa de haver qualquer limitação ao número de transmissões por morte da posição do arrendatário habitacional.

XVII - Esta transmissão, quase que dinástica, do direito ao arrendamento por morte do arrendatário não prejudica seriamente os interesses do senhorio. Por um lado, a norma constante desta disposição legal apenas se aplica aos arrendamentos celebrados após a entrada em vigor NRAU, sendo de supor que, correspondendo a renda ao valor de mercado do imóvel, o senhorio terá interesse...

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