Acórdão nº 50/20 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Janeiro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução16 de Janeiro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 50/2020

Processo n.º 495/19

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos A., B. e C., no âmbito de processo penal tramitado na forma comum e perante tribunal coletivo, o Ministério Público acusou os arguidos da prática, em coautoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo disposto nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, em concurso real (no que diz respeito ao arguido A.), com um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), 3.º, n.º 2, alínea e), 4.º e 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, e de um crime de recetação, p. e p. pelo disposto no artigo 231.º, n.º 1, do Código Penal.

Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual foi comunicada a possibilidade de virem a ser dados como provados factos que implicariam alteração substancial dos que constavam da acusação. Mais especificamente, a possibilidade de os arguidos terem cometido, não um furto qualificado subsumível no artigo 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal (punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias), mas um furto qualificado subsumível no artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal (punível com pena de prisão de 2 a 8 anos). Foi, pois, determinada notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º, n.os 3 e 4, do Código do Processo Penal, tendo o Ministério Público respondido positiva, mas os arguidos negativamente.

Por decisão proferida a 8 de abril de 2019, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto: (i) absolveu o arguido A. da prática do crime de recetação de que ia acusado; (ii) condenou o mesmo arguido em pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por pena de prestação de 180 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de detenção de arma proibida; e (iii) desaplicou o artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, «no segmento que impede a extinção da instância e consequentemente que os novos factos não autonomizáveis sejam tidos em consideração em novo processo, por ofensa do princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efetivação de direitos, liberdades e garantias (arts. 2º e 9ºb) da CRP), do princípio da proporcionalidade (art. 18º nº. 2), do direito à tutela jurisdicional efetiva (art. 20º) e do principio do primado e independência dos tribunais na aplicação da justiça penal»; consequentemente, decidiu «não conhecer da acusação relativa ao crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, 204º, n.º 1, al. f) do Código Penal por impossibilidade legal superveniente, absolvendo-se os arguidos da instância quanto a tal acusação, e determinar a separação dos autos quanto aos factos relativos ao mesmo crime com extração de certidão integral dos mesmos e devolução destes ao Ministério Público para que proceda a de novo a inquérito levando em consideração os novos factos apurados». É o seguinte, para o que aqui releva, o conteúdo dessa decisão:

«Da alteração substancial dos factos.

O artº 1 alínea f) do C. P. Penal define como «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;

Estamos, assim nos autos, perante uma situação de "alteração substancial de factos".

Sobre a epígrafe, "da alteração substancial de factos", o artº 359 do C. Penal, na redação vigente e que lhe foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, estabelece o seguinte:

1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”

A redação anterior de tal preceito era a que adiante se transcreve:

1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.

2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

3 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”

Nos nossos autos os arguidos após a comunicação a que alude o nº 3 da norma em apreço manifestaram a sua oposição ao prosseguimento dos autos/julgamento pelos novos factos.

Os factos novos apurados não são claramente autonomizáveis em relação ao objeto dos autos no que concerne à acusação pelo crime de furto qualificado.

Os novos factos, porquanto consubstanciam alteração substancial não podem ser tidos em conta para o efeito de condenação nestes autos nem podem, de acordo com a norma vigente, determinar a extinção da instância com posterior comunicação ao Mº Pº. para que instaure novo inquérito.

Do exposto resulta que, ao contrário do que era prática judicial comum e jurisprudência maioritária, o tribunal não pode agora abster-se de conhecer do mérito da acusação, absolver o arguido da instância e remeter certidão dos autos ao Mº. Pº. para que instaure novo inquérito.

Tal solução afigura-se-nos manifestamente desadequada não por não permitir a condenação dos arguidos nestes autos pelo crime que (conforme se apurou) efetivamente cometeram, os respetivos direitos de defesa consagrados quer na legislação penal e processual penal quer constitucionalmente obrigam a tal o que não se discute, mas por não permitir a (re)abertura de inquérito para se pronunciar sobre os novos factos com o seguimento dos ulteriores termos processuais com (se for ocaso) dedução de nova acusação, instrução e novo julgamento (necessariamente por um tribunal com composição diversa deste - outros juízes).

Tal solução/proibição implica que este tribunal tenha que decidir com uma realidade diferente da apurada e por isso distorce a verdade material.

**

Impedir o tribunal de firmar a verdade dos factos e/ou obrigar o mesmo a decidir com factos que sabe não corresponderem à verdade àquela é distanciar demais o direito da realidade e consequentemente da justiça material.

Tal solução distância os tribunais da realidade, da justiça material e não é compreensível para os destinatários da justiça.

Uma coisa, reafirma-se, é ao tribunal estar vedado, sem garantir ao arguido que utilize e esgote todos os meios de defesa, designadamente no âmbito de um novo inquérito, instrução e novo julgamento (até com outros juízes) que utilize os novos factos e imponha ao arguido uma condenação com base em factos /imputação que o mesmo não teve hipótese de se defender oportunamente e outra, completamente distinta, é obrigar os tribunais a distorcer a realidade e/ou atuar com base contrária à sua convicção e independência condicionada de forma férrea e inultrapassável pela acusação.

(…)

Por outro lado, face à solução adotada na reforma efetuada no preceito em análise deixa de fazer qualquer sentido permitir ao arguido que aceite o prosseguimento dos autos. Consagra-se uma opção que na verdade não o é e não deveria sequer ser colocada ao arguido.

De facto, na redação anterior, ao arguido apresentava-se um de dois caminhos ou seja, se aceitava o processo terminaria com o exercício do contraditório e uma decisão contemplando os novos factos; se não aceitava o processo "regressava" à fase de inquérito.

Tal disjuntiva hoje não existe e a opção que se coloca ao arguido é somente se aceita correr o risco de ser condenado em sanção mais severa ou não.

Assim sendo não faz qualquer sentido permitir ao arguido que aceite. Ao fazê-lo estará manifestamente e sempre a prejudicar-se.

Tal aceitação só poderá ocorrer em situações de falta de informação ou manifesto erro da defesa.

Na solução atual o tribunal deverá, mais do que comunicar, informar o arguido que se diz que sim poderá ser punido de forma mais severa e se diz que não, não se passa nada e fica tudo na mesma.

Se não existe opção, então permitir ao arguido que se prejudique de forma voluntária afigura-se manifestamente desadequado e contrário a direito. Veja-se que a lei processual, p. ex., não permite que o arguido confesse de forma falsa, possa negociar a pena ou aceite ser julgado por crimes prescritos.

A solução decorrente da lei, artº 359 nº 1 na parte que impede a consideração dos novos factos em novo processo e obriga o tribunal a ignorar os factos novos e a decidir apenas com os factos constantes da acusação parece-nos manifestamente...

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