Acórdão nº 31/20 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Janeiro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução16 de Janeiro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 31/2020

Processo n.º 258/19

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que são recorrentes A., B., C. e D., e recorridos o Ministério Público e Joaquim Neto de Moura, foi pelos primeiros interposto recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 93-101), ao abrigo do disposto na alínea b) do número 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), do despacho de indeferimento de reclamação proferido pelo STJ, em 13 de fevereiro de 2019.

2. Inicialmente, os ora recorrentes foram absolvidos da prática de diferentes crimes por sentença do Juízo Local Criminal de Lisboa. Inconformado, o então assistente – recorrido no presente – interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, cujo acórdão de 10 de julho de 2018 julgou parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, revogou a sentença absolutória original e condenou os então arguidos – ora recorrentes – em diferentes penas de multa (fls. 44 verso e 45).

Perante tal condenação, ditada pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa, os aqui recorrentes interpuseram recurso para o STJ e desde logo suscitaram, para o que releva para a fiscalização do Tribunal Constitucional, a questão de constitucionalidade a respeito da irrecorribilidade daquele acórdão condenatório por força da aplicação dos artigos 400.º, número 1, alínea e) e 432.º, número 1, do Código de Processo Penal face aos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, nº 1, da Constituição.

Nesta sequência, precisamente por ser irrecorrível o acórdão em causa, como anteciparam os recorrentes, em razão das referidas normas do CPP, foi proferido pelo próprio Tribunal da Relação de Lisboa, em 18 de dezembro de 2018, despacho de não admissão de recurso para o STJ.

Notificados da não admissão, os ora recorrentes apresentaram a seguir reclamação para o STJ, em que se insurgiram novamente contra a aplicação das normas da alínea b), do número 1, do artigo 432.º e da alínea e), do número 1, do artigo 400.º, do CPP, que reputam inconstitucionais por tornar inadmissível recurso nas situações como a do caso concreto. Como aludido supra, a reclamação foi indeferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que igualmente manteve os fundamentos legais, na forma dos consignados dispositivos do CPP, quanto à irrecorribilidade da decisão a quo.

É desta decisão de indeferimento da reclamação que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.

3. Por despacho às fls. 110 e 111, o Tribunal Constitucional delimitou o objeto do recurso da seguinte maneira:

“O único sentido normativo útil, que se extrai da exposição dos recorrentes e que coincide com a ratio decidendi da decisão recorrida, corresponde à interpretação, resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, conducente ao sentido de que não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias”.

Nesses termos, preenchidos os pressupostos processuais e admitido o requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

4. Os recorrentes apresentaram alegações (fls. 115-121), tendo formulado conclusões no sentido de que a aplicação de tais normas “inutiliza as garantias de defesa e o direito ao recurso dos Arguidos em processo criminal, impedindo-os de verem a decisão que os condena, ser apreciada, inovatoriamente em relação à absolvição anterior, por um outro tribunal, ficando assim impedido o direito a, pelo menos, um único recurso” (fls. 120, verso).

Além disso, defendem os recorrentes que “a divergência do sentido decisório verificado em sede de julgamento e em sede de Tribunal de recurso, acentua a possibilidade de verificação do risco de erro judiciário que pode ocorrer no caso dos presentes Autos, permitindo legitimar a dúvida sobre a justiça da decisão”. Afirmam ainda que “nunca viram reavaliada a medida da pena que lhes foi aplicada, nem tão pouco os respectivos critérios que determinaram aquela pena” e não tendo podido invocar argumentos de defesa “nunca chegaram a beneficiar do duplo grau de jurisdição por via do qual se efectivam as garantias de defesa constitucionalmente consagradas”.

Por fim, aduzem que “assume enorme injustiça que a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça seja alcançada à custa do sacrifício dos direitos fundamentais de defesa dos arguidos” e termina por requerer a declaração de inconstitucionalidade das aludidas normas do CPP por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

5. Notificados os recorridos, apenas o Ministério Público apresentou contra-alegações (fls. 130-137). Nada tendo a opor quanto à delimitação do objeto do recurso ou quanto à verificação dos pressupostos processuais, centrou-se na apreciação do mérito do recurso. Neste âmbito, remeteu, por citação direta, para o Acórdão n.º 672/2017, da 3ª Secção do Tribunal Constitucional, que não julgou inconstitucional a norma extraível do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), “na interpretação segundo a qual são irrecorríveis os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que, inovatoriamente em face da absolvição ocorrida em 1ª instância, apliquem pena não privativa da liberdade” porquanto não viola o direito ao recurso como garantia de defesa em processo criminal, conforme fixado pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.

Conclui o Ministério Público (fls. 137), com isso entendendo que deve ser negado provimento ao recurso:

“a interpretação, resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, conducente ao sentido de que não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª instância sejam absolutórias, não viola o direito ao recurso enquanto garantia do processo criminal, consagrado no artigo 32.º, nº 1 da Constituição, não sendo por isso inconstitucional”.

Em virtude da cessação de funções da primitiva Relatora, foram os autos objeto de redistribuição.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

a) Delimitação do objeto do recurso

6. Conforme destacado no ponto 3, supra, o objeto do recurso, interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do despacho de indeferimento de reclamação proferido pelo STJ, em 13 de fevereiro de 2019 – já devidamente delimitado pelo despacho de fls. 110-111 – é a interpretação no sentido de que não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias, resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, os quais para fins de clareza se transcrevem:

“Artigo 400.º

Decisões que não admitem recurso:

1) Não é admissível recurso:

[…]

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos”.

“Artigo 432.º

Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

[…]

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

A constitucionalidade da norma extraída de tais preceitos é questionada à luz do parâmetro do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, que prevê:

“Artigo 32.º

Garantias de processo criminal

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

Apresentado o enquadramento normativo relevante para a presente fiscalização de constitucionalidade, importa, antes de passar à apreciação do seu mérito propriamente dito, articular a orientação jurisprudencial que tem sido firmada pelo Tribunal Constitucional nesta matéria.

b) Evolução recente da jurisprudência do Tribunal Constitucional respeitante ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal à luz do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição

7. Esta não é a primeira vez que o Tribunal Constitucional é confrontado com a questão da conformidade constitucional das normas extraídas dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP. Nessa matéria, importa, sobretudo, revisitar os Acórdãos n.º 429/2016 e 595/2018, ambos do Plenário do Tribunal Constitucional, porquanto fixaram a sua orientação jurisprudencial quanto à dimensão normativa em apreço, que foi objeto de diferentes juízos do próprio Tribunal ao longo do tempo.

No primeiro, decorrente de um recurso obrigatório por oposição de julgados, o Tribunal julgou inconstitucional “a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição”.

No segundo, um processo de fiscalização sucessiva de constitucionalidade, movido pelo Ministério...

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