Acórdão nº 98/20 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução12 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 98/2020

Processo n.º 1101/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., notificada da Decisão Sumária n.º 858/2019, que, com fundamento na inidoneidade do objeto e em ilegitimidade, não conheceu do objeto do recurso de constitucionalidade por si interposto, vem reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).

A reclamante, recorrente nos presentes autos, em que são recorridos B. e C., interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães da sentença proferida em 1.ª instância que julgou improcedente a ação declarativa comum por si instaurada contra os ora recorridos. Aquele tribunal, por acórdão de 18 de dezembro de 2017, revogando a decisão recorrida, decidiu condenar os réus «a reconhecerem que o contrato outorgado, por escritura pública, a 26/11/2010 entre C. como vendedor e B. como compradora, foi simulado, prevalecendo o contrato dissimulado de doação, ordenando-se o cancelamento do registo que teve como fundamento o contrato de compra e venda e eventuais inscrições posteriores ao registo da ação» e «a pagarem a multa de 10 unidades de conta como litigantes de má-fé e indemnização a favor da autora, a fixar nos termos do artigo 543.º nº 3 do CPC».

Deste acórdão ambas as partes interpuseram recurso de revista e, por acórdão de 4 de junho de 2019, o Supremo Tribunal de Justiça, concedendo revista aos réus e negando revista à autora, ora reclamante, decidiu revogar o acórdão recorrido, mantendo o decidido na 1.ª instância no sentido da improcedência da ação e da absolvição dos réus do pedido, mantendo ainda tal decisão relativamente à absolvição dos réus quanto ao pedido de condenação por litigância de má-fé.

Inconformada, a ora reclamante arguiu a nulidade deste acórdão, com fundamento em omissão de pronúncia, tendo ainda invocado que tal acórdão «fez uma interpretação, implícita, do artigo 640 nº 2 alínea a) do C. P. Civil, de modo desproporcional e arbitrário, porque sem fundamento objeto válido, na medida em que não conheceu, previamente, como se lhe impunha, se era ou não exigível integral cumprimento do ónus imposto pelo dito normativo à autora e ora reclamante, tratando-se, pois, de uma decisão constitucionalmente desconforme e arbitrária» (cf. conclusão D), de tal requerimento – fls. 1472/v.º).

Por acórdão de 10 de maio de 2019, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal nulidade e a referida inconstitucionalidade. Foi então interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC).

2. É a seguinte a fundamentação da decisão sumária ora reclamada:

«5. Resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, que, com a presente impugnação, a recorrente pretende que seja apreciada a «inconstitucionalidade material e concreta da norma do artigo 640 n. 2 alínea a) do C. P. Civil, quando interpretada (…) [no sentido] de ser exigível, in casu, o integral cumprimento do ónus processual de indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso da recorrente em sede de matéria de facto, que se baseou em pressupostos factuais errados (…) o que redundou numa decisão, implícita, não fundamentada, arbitrária, desproporcional e não equitativa, porque sem fundamento objetivo válido, constitucionalmente desconforme».

In casu, o objeto do recurso prende-se exclusivamente com a eventual inconstitucionalidade da decisão que a recorrente visa impugnar, sendo por isso inidóneo, razão pela qual não se pode tomar conhecimento do respetivo mérito.

Com efeito, não obstante a recorrente ter reportado o problema de constitucionalidade que pretende ver apreciado a uma suposta interpretação extraída do artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), resulta, desde logo da forma como enunciou tal problema, que o seu propósito é sindicar a decisão do caso concreto. Isto é, pretende impugnar a decisão que entendeu, no caso dos autos, com as suas especificidades, ser exigível, pela recorrente, no que respeita à impugnação da matéria de facto, o cumprimento do ónus previsto no aludido preceito legal. Por isso, na própria enunciação da questão, a recorrente manifesta a sua discordância quanto à própria decisão, sustentando que, na sua perspetiva, a mesma se baseou “em pressupostos factuais errados” (“pressupostos” esses a que alude nos pontos 10 e 11 do requerimento de interposição de recurso).

Assim, o propósito da recorrente não é questionar uma interpretação, de natureza geral e abstrata, extraída do aludido preceito; pretende, sim, questionar a decisão que, no caso concreto, entendeu não ser de conhecer o recurso por si interposto, quanto à matéria de facto, por se ter considerado que não havia sido cumprido o ónus previsto no referido artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC. Ora, face a tal discordância, a recorrente considera a própria decisão de inconstitucional, por entender que esta fez uma errada aplicação do referido preceito ao caso, baseando-se num pressuposto factual errado (respeitante, segundo a recorrente, a uma circunstância específica do recurso em matéria de facto concretamente interposto que, na sua ótica, deveria ter sido considerara e que implicaria que, na situação dos autos, que o cumprimento de tal ónus não fosse exigível).

Subjacente ao recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente não se encontra, pelo exposto, um qualquer problema de desconformidade de norma, enquanto critério de decisão, dotado de generalidade e abstração, face a quaisquer parâmetros constitucionais. Diferentemente, o que a recorrente pretende é a fiscalização da própria decisão recorrida, no que respeita ao entendimento, nesta expresso, de que, no caso concreto, não foi dado cumprimento ao ónus previsto no referido artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, não sendo por isso de conhecer o recurso por aquela interposto em matéria de facto.

Ora, como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional proceder a uma sindicância das decisões proferidas pelos restantes tribunais no tocante a estes concretos aspetos, não lhe cabendo apreciar se, in casu, foi correto o juízo efetuado pela decisão recorrida no sentido de, nas circunstâncias específicas do caso concreto, não se mostrarem verificados os requisitos necessários ao conhecimento de um recurso em matéria de facto. O Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, limita-se a apreciar a constitucionalidade (e, em certos casos, a legalidade) normativa, encontrando-se os seus poderes de cognição limitados à norma que a decisão recorrida, consoante os casos, tenha aplicado ou a que tenha recusado aplicação (artigo 79.º-C da LTC).

Conclui-se, por isso, que o objeto dos presentes autos, é inidóneo, não podendo, por isso, conhecer-se do respetivo mérito.

6. Por outro lado, falece legitimidade à recorrente para a interposição do presente recurso.

Sustenta a recorrente que a decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2019 – constitui uma “decisão-surpresa”, na medida em que um profissional do foro com médios conhecimentos não a poderia prever, de forma a poder suscitar antecipadamente a questão da inconstitucionalidade. Entende, por isso, que suscitou a questão da inconstitucionalidade logo que foi notificada do referido acórdão, em sede de reclamação de nulidades, por ser o articulado processualmente admissível para o efeito.

Não se assiste, contudo, razão.

É certo que, em determinados casos, o Tribunal Constitucional considera ser de dispensar o preenchimento do ónus de suscitação prévia, admitindo o conhecimento apesar da omissão de suscitação adequada da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Estão em causa situações em que o Tribunal Constitucional entende que, em concreto, o cumprimento desse ónus por parte do interessado não é exigível.

Contudo, para que se possa apurar a procedência de uma situação de não exigibilidade, não basta que o recorrente invoque ter sido surpreendido pela interpretação normativa determinada e aplicada pela decisão recorrida, como sucede no presente caso. A mera surpresa subjetiva não é fundamento suficiente para se poder ter por dispensado o recorrente deste ónus.

Com efeito, tem este Tribunal afirmado, de modo reiterado, que recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas suscetíveis de virem a ser aplicadas na decisão, devendo as mesmas adotar um dever de litigância diligente e de prudência técnica, ponderando a estratégia processual que melhor salvaguardará os seus direitos e interesses. Por isso, a invocação de mera surpresa subjetiva com o sentido da decisão proferida (v. por exemplo, os Acórdãos n.ºs 261/2002, 115/2005, 14/2006 e 148/2008, todos acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). É necessário, na verdade, que se afira, em concreto, que a parte não poderia razoavelmente antecipar o problema de inconstitucionalidade em causa, designadamente por ser confrontada com a concreta aplicação de norma ou interpretação normativa que se apresenta objetivamente como imprevisível e inesperada, não se lhe podendo impor, segundo um critério de exigibilidade e razoabilidade, que tivesse antecipado que o tribunal iria...

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