Acórdão nº 207/20 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução11 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 207/2020

Processo n.º 343/19

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Beja (Juízo do Trabalho), em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., S.A., foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do número 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), da sentença proferida naquele tribunal, em 22 de janeiro de 2019, na sua versão retificada (fls. 379-382), que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial interposta pela ora recorrida, condenando-a em coima e sanção acessória pela prática de contraordenação muito grave prevista pelo Código do Trabalho e, assim, supostamente, recusando a aplicação da interpretação normativa do número 2, do artigo 564.º, do mesmo diploma legal adotada na decisão condenatória originária da Autoridade para as Condições do Trabalho.

2. No que releva para o presente, importa destacar o seguinte segmento da decisão recorrida:

“A autoridade administrativa condenou ainda a arguida no pagamento da remuneração indevidamente descontada ao sinistrado trabalhador, no valor de € 2.337,12 e respetivos juros, e das contribuições devidas à segurança social, no valor de € 912,53.

A arguida insurge-se contra esta condenação alegando que o artigo 564º nº 1 do Código do Trabalho, quando interpretado no sentido de conferir à ACT a legitimidade para exercer uma atividade materialmente jurisdicional – ultrapassando e substituindo assim os próprios tribunais -, padece de inconstitucionalidade, por violação da reserva de jurisdição a órgão de soberania e do princípio da separação de poderes, consagrados na e pela Lei Fundamental (arts. 110º, 111º, 202º nº 1 e 211º, CRP).

Entendemos que tal inconstitucionalidade não se verifica no que concerne à restituição das quantias indevidamente retidas ao trabalhador e para o efeito remetemos para a extensa argumentação expandida no douto Acórdão do TC n.º 510/2016, publicado no Diário da República n.º 204/2016, Série II de 2016-10-24, que decidiu «Não julgar inconstitucional a norma do artigo 564.º, n.º 2 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na interpretação de que concede a um ente administrativo, em sede de procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador”.

[…]

Todavia a argumentação expandida, e que justifica a reposição célere do direito do trabalhador à irredutibilidade da sua retribuição, já não procede quanto à condenação pela autoridade administrativa das quantias devidas a título de comparticipação à segurança social (até porque não vem imputada à arguida a prática de qualquer contra-ordenação resultante do não pagamento de tais contribuições – a qual é da competência do ISS-IP – cfr. artigo 2º, n.º 1 alínea a) da Lei n.º 107/2009). Na realidade e conforme resulta do acórdão supra citado: «a ordem de pagamento em causa não pode ter por objeto uns “quaisquer créditos laborais”, mas somente aqueles que são, ele próprios, tutelados por via contraordenacional, isto é, aqueles cujo não cumprimento consubstancia, cumulativamente, o preenchimento do tipo objetivo de uma contraordenação laboral. O mesmo é dizer que a ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho tem por objeto exclusivo um pagamento que corresponde ao dever cuja omissão é sancionada pela coima aplicada. Aliás, a medida do incumprimento do dever omitido determina a medida do pagamento imposto pela Administração.

Assim não só a letra do artigo 654º [sic], n.º 2 não confere tal competência à ACT como a própria lei (artigo 62.º do RPCOL) prevê um mecanismo estadual para que esteja garantida a execução de dívidas contributivas pela autoridade que é prima facie a competente para essa execução – o Instituto de Segurança Social – execução essa que seguirá trâmites administrativos próprios e oferece garantias ao devedor que não são possíveis no âmbito do processo contra-ordenacional […].

Em face do exposto […] considerando inconstitucional a interpretação do artigo 564º, nº 2 do Código do Trabalho no sentido de que concede a um ente administrativo, em sede de procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento das contribuições devidas à segurança social, decido revogar a decisão administrativa na parte em que condena a arguida no pagamento das contribuições devidas à segurança social.”

3. Perante tal decisão, o Ministério Público apresentou requerimento de recurso obrigatório de constitucionalidade (fls. 386).

Em virtude da cessação de funções da primitiva Relatora, foram os autos objeto de redistribuição.

Nesta sequência, admitido o requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

4. Notificadas as partes, apenas o recorrente apresentou alegações (fls. 443-472), das quais, em síntese, releva o seguinte sentido:

1. Interpôs o Ministério Público, em 9 de fevereiro de 2019, a fls. 385 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 342 a 371 (rectificada pelo douto despacho de fls. 379 a 382, datado de 29 de Janeiro de 2019), proferida pelo Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, “ao abrigo do disposto no art. 70º, al. a) e 72º, nº 1, al. a) e 3, da Lei nº 28/82, de 15/11 (…)”.

2. Com a interposição deste recurso, pretende o Ministério Público que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho “(…) quando interpretado no sentido de que concede a um ente administrativo, em sede de procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento das contribuições devidas à Segurança Social”.

3. Os parâmetros de constitucionalidade considerados, embora tacitamente, violados, parecem ser, por remissão para a fundamentação da douta decisão impugnada, a “(…) reserva da jurisdição a órgão de soberania e [o] princípio da separação de poderes, consagrados na e pela Lei Fundamental (arts. 110º, 111º, 202º nº 1 e 211º, CRP).

[…]

11. Antes de procedermos à análise substantiva das questões relevantes de constitucionalidade suscitadas nos autos, à qual, apesar da sua inutilidade processual não nos eximiremos, não poderemos deixar de abordar uma vertente, de natureza adjectiva, que, em nosso entender, inviabiliza o conhecimento, por parte do Tribunal Constitucional, da matéria constitutiva do objecto do presente recurso.

12. Efectivamente, conforme tivemos ocasião de reproduzir anteriormente, a Mm.ª Juiz “a quo”, antes de discorrer sobre os fundamentos da inconstitucionalidade discernida na interpretação normativa do disposto no n.º 2, do artigo 564.º, do Código do Trabalho, alegadamente desaplicada nos autos, afirmou, peremptoriamente, que:

“Na realidade e conforme resulta do acórdão supra citado [Acórdão do TC n.º 510/2016]: «a ordem de pagamento em causa não pode ter por objeto uns “quaisquer créditos laborais”, mas somente aqueles que são, eles próprios, tutelados por via contraordenacional, isto é, aqueles cujo não cumprimento consubstancia, cumulativamente, o preenchimento do tipo objetivo de uma contraordenação laboral. O mesmo é dizer que a ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho tem por objeto exclusivo um pagamento que corresponde ao dever cuja omissão é sancionada pela coima aplicada”.

13. A tal reflexão acrescentou a mesma decisora, com relevância para a presente argumentação, que:

“Assim não só a letra do artigo [564]º, n.º 2 não confere tal competência à ACT como a própria lei (artigo 62.º do RPCOL) prevê um mecanismo estadual para que esteja garantida a execução de dívidas contributivas pela autoridade que é prima facie a competente para essa execução” (sublinhado nosso)”.

14. Daqui resulta, inequivocamente, que a Mm.ª decisora da 1.ª instância entendeu que a interpretação normativa do disposto no n.º 2, do artigo 564.º, do Código do Trabalho, que suportou a decisão condenatória da Autoridade para as Condições de Trabalho (no que concerne à ordem de pagamento das contribuições de vidas à Segurança Social) e que foi, por si, considerada contrária ao comando constitucional, não se revelava aplicável à situação resolvida pela entidade administrativa nem à adequada dirimição do litígio subjacente e, consequentemente, lógico-juridicamente não recusou efectivamente a sua aplicação com fundamento em...

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