Acórdão nº 182/20 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução11 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 182/2020

Processo n.º 868/2018

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos de Tribunal Arbitral constituído junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em que é recorrente A. SGPS, S.A., e recorrida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante «LTC»), em 28 de setembro de 2018, da decisão arbitral proferida por aquele Tribunal em 20 de setembro de 2018, que julgou improcedente a pretensão da recorrente a ver reconhecida a ilegalidade do ato de autoliquidação relativo ao exercício de 2012, na parte em que não foi autorizada a dedução dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) à coleta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma, nos termos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), na versão resultante da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, então vigente.

2. A decisão recorrida, na parte que releva para a decisão a proferir, tem o seguinte teor:

«Devidamente equacionada, nestes termos, a questão a solucionar nos autos, cumprirá ainda ter presente que o referente fundamental da resposta a dar àquela, será o formulado no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Neste quadro, o desiderato da presente decisão será, não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de ser possível utilizar a dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

(…)

Sumariando o quanto atrás se veio dizendo, verifica-se, desde logo, que a interpretação sustentada pela Requerente assenta, essencialmente, no teor literal das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, não se descortinando nenhum fundamento substancial que justifique a solução em causa, tanto mais que os argumentos em que assenta tal posição restringem-se, essencialmente, às tributações autónomas de encargos dedutíveis e às deduções concretamente em causa (benefício SIFIDE) sendo que, por um lado, nada se prova a respeito de, no caso concreto, estarem em causa apenas tributações autónomas daquele tipo (e não de outros), e, por outro, da interpretação proposta sempre decorreria que todas as deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2 do CIRC em causa se fariam a todos os tipos de tributação autónomas, incluindo, por exemplo, as relativas a pagamentos a entidades sujeitas a regimes de tributação claramente mais favoráveis, as relativas a despesas confidenciais ou as compensações a gerentes, e nenhum dos argumentos substanciais em que assenta a posição da Requerente permite justificar que tal aconteça.

Por outro lado, como se viu, se é certo que o artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão não distingue entre a liquidação de tributações autónomas e a liquidação de IRC tradicional ou stricto sensu (sobre o lucro tributável), a verdade é que, a montante, o procedimento e a natureza dos dois tipos de imposição tributária é substancialmente distinto, como se viu e conforme a jurisprudência constitucional na matéria dá abundante conta, situação à qual não se poderá, julga-se, deixar de atender na matéria sub iudice.

Acresce que, como também se viu, a ratificação da interpretação que sustenta o petitório da Requerente, seria, a jusante, geradora de assinalável turbulência no edifício normativo do IRC, designadamente no que diz respeito aos regimes do pagamento especial por conta, e das sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal.

Acresce ainda que, como se analisou também, a atinência à literalidade dos preceitos do artigo 90.º, n.º 1 e 2, propugnada pela Requerente, redundaria – crê-se – num atropelo ao princípio da igualdade tributária, para além do mais, constitucionalmente imposto.

Por fim, e como se acabou atrás de ver, ao nível do artigo 88.º/12 do CIRC aplicável, resultava já, nos termos expostos, que:

por norma, a coleta das tributações autónomas não admitia deduções; e

o artigo 90.º/2 do CIRC não era aplicável à coleta das tributações autónomas.

Por tudo isto, julga-se que na estrita conjugação do texto das duas normas, o legislador disse mais do que aquilo que queria, situação que, de resto, resultou não de descuido coevo da redação de tais normas, mas, antes, da evolução histórica do regime normativo do IRC e, concretamente, da paulatina introdução naquele do regime relativo às tributações autónomas, sem que o mesmo se refletisse, coerentemente, no teor do artigo 90.º, n.º 2 do mesmo Código.

Este desacerto, aliás, é patente na norma do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que dispondo que não são “efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado” de tributações autónomas, não ressalva o n.º 12 do mesmo artigo que prevê, precisamente, a possibilidade de deduções à tributação autónoma a que se refere.

Estamos, assim, perante uma situação descrita pelo Ilustre Mestre Prof. Doutor Baptista Machado, em que: “Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte de uma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer alude com clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação corretiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador.24. [24 Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 20.ª reimpressão, 2012, p. 186.]

Com efeito, a fórmula normativa do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, tomada à letra, como faz a Requerente, abrange hipóteses, como se viu, que decididamente não estão no espírito da lei nem são conformes às especificidades e natureza próprias das diversas tributações autónomas. No caso, como se referiu já, não por má inspiração da própria norma, mas das sucessivas reformas que historicamente foram introduzindo as tributações autónomas em IRC, sem que as mesmas se refletissem, correspondentemente, na redação do artigo 90.º, n.º 2 de tal Código.

Por outro lado, sistematicamente encarada, tal fórmula, reduzida à sua literalidade, é geradora de graves e inultrapassáveis incoerências, como se viu, para além de, como também se viu, o CIRC aplicável ter já, na norma do n.º 12 do artigo 88.º, evidências literais de que a norma do artigo 90.º/2 do mesmo Código não seria, por regra, aplicável à coleta de tributações autónomas, realizada no n.º 1 do artigo.

Deste modo, tendo em conta a compreensão racional, histórica e sistemática da norma em questão, torna-se forçoso interpretar corretivamente a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referência que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da coleta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria coletável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não aos montantes apurados a título de tributações autónomas, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redação textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.

Admite-se, que se possa questionar a bondade da opção legislativa referida, implícita até à introdução do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, e a partir daí explícita, no que diz respeito à inadmissibilidade de outros tipos de dedução, para além da prevista no n.º 12.º do mesmo artigo 88.º, à coleta de outros tipos de tributação autónoma. Não obstante, julga-se que tal opção, agora expressa no referido artigo 88.º/21 do CIRC, se contém ainda dentro do espaço de discricionariedade legislativa, não ofendendo o conteúdo fundamental de qualquer preceito constitucional ao caso convocável.

Face ao exposto, e julgando-se que, face ao direito aplicável ao facto tributário em questão na presente ação arbitral, não era admissível a dedução nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC à coleta de tributações autónomas efetuada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, deverá o pedido arbitral improceder.»

3. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem o seguinte teor:

[…]

§ 2.º

Da peça processual em que a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade

5º A questão de inconstitucionalidade aqui em causa surge com a recusa pelo acórdão arbitral recorrido de aplicação da norma fiscal projetada pelo correspondente texto, e correção do mesmo via aplicação do que o acórdão arbitral designa por "interpretação corretiva".

6º Na interpretação/aplicação que faz do artigo 9.º do Código Civil (cfr. a pág. 9 da decisão arbitral), mais concretamente na interpretação/aplicação da norma que daí extraiu de que "deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso" (cfr. a pág. 9 da decisão arbitral),

7º...

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