Acórdão nº 152/20 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução04 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 152/2020

Processo n.º 544/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. A. instaurou ação administrativa, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, contra o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, pedindo a anulação do ato de indeferimento do pedido de pagamento dos créditos emergentes da violação do seu contrato de trabalho e a sua substituição por um outro que ordene o pagamento dos referidos créditos.

Foi proferida sentença no dia 10 de abril de 2019, na qual se recusou «a aplicação, no caso concreto, por inconstitucional, dos n.º 4 e 8 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril», e se julgou procedente a ação, sendo o réu condenado a praticar o ato administrativo devido de deferir o pagamento dos créditos laborais apresentados pela autora até ao limite legalmente estabelecido.

2. O Ministério Público interpôs o presente recurso ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 75.º-A, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [LTC]), pois «com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade, certeza e segurança jurídica e da justa remuneração, a douta sentença em apreço recusou a aplicação do artigo 2.º, n.º 4 e 8, do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril».

3. Prosseguindo os autos para alegações, o recorrente conclui do seguinte modo:

«Assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:

a) negar provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto, nos presentes autos, pelo Ministério Público;

b) julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 2º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o Fundo apenas assegura o pagamento dos créditos previstos no n.º 1 do mesmo artigo que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da acção de insolvência, sendo este prazo insusceptível de qualquer interrupção ou suspensão;

c) julgar inconstitucional a norma do n. º 8 do artigo 2º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insusceptível de qualquer interrupção ou suspensão;

d) Confirmar, nessa medida, a sentença de 10 de Abril de 2019, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro».

4. Regularmente notificada, a recorrida não apresentou contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) Delimitação do objeto do recurso

5. O objeto do presente recurso corresponde às normas constantes «dos n.º 4 e 8 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril».

É necessário começar, no entanto, por uma precisão. O Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, procedeu à aprovação, através do seu artigo 2.º, do «Novo regime do Fundo de Garantia Salarial» (NRFGS) que consta de um anexo ao mesmo diploma. Ora, se se atender à fundamentação da decisão recorrida facilmente se percebe – desde logo pelas transcrições que são feitas (cfr. pp. 9-10 da decisão recorrida) – que a questão de constitucionalidade analisada se reporta ao artigo 2.º do NRFGS e não ao artigo 2.º do referido Decreto-Lei. Considera-se, por isso, que foram desaplicados por esta decisão as normas constantes dos n.ºs 4 e 8 do artigo 2.º do NRFGS – sendo estas o objeto do presente processo de fiscalização da constitucionalidade.

6. Terá de se atentar, de seguida à letra do artigo 2.º do NRFGS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, em especial à redação dos referidos n.º 4 e 8, bem como do n.º 1, para onde remete o n.º 4 – que sublinhamos –, que é a seguinte:

«Artigo 2.º
Créditos abrangidos

1 – Os créditos referidos no n.º 1 do artigo anterior abrangem os créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação.

2 – Aos créditos devidos ao trabalhador referidos no número anterior deduzem-se:

a) Os montantes de quotizações para a segurança social, da responsabilidade do trabalhador;

b) Os valores devidos pelo trabalhador correspondentes à retenção na fonte do imposto sobre o rendimento.

3 – O Fundo entrega às entidades competentes as importâncias referidas no número anterior.

4 – O Fundo assegura o pagamento dos créditos previstos no n.º 1 que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência ou à apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas.

5 – Caso não existam créditos vencidos no período de referência mencionado no número anterior ou o seu montante seja inferior ao limite máximo definido no n.º 1 do artigo seguinte, o Fundo assegura o pagamento, até este limite, de créditos vencidos após o referido período de referência.

6 – A compensação devida ao trabalhador por cessação do contrato de trabalho que seja calculada nos termos do artigo 366.º do Código do Trabalho, diretamente ou por remissão legal, é paga pelo Fundo, com exceção da parte que caiba ao fundo de compensação do trabalho (FCT), ao fundo de garantia de compensação do trabalho (FGCT) ou a mecanismo equivalente (ME), após o seu acionamento, salvo nos casos em que este não possa ter lugar.

7 – O disposto nos números anteriores não exime o empregador da responsabilidade pelo cumprimento das respetivas obrigações fiscais e contributivas de segurança social.

8 – O Fundo só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.»

O n.º 1 do artigo 1.º do NRFGS, a que se refere o n.º 2 do artigo 2.º, transcrito supra, tem a seguinte redação:

«Artigo 1.º

Situações abrangidas

1 – O Fundo de Garantia Salarial, abreviadamente designado por Fundo, assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja:

a) Proferida sentença de declaração de insolvência do empregador;

b) Proferido despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização;

c) Proferido despacho de aceitação do requerimento proferido pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I. P. (IAPMEI, I. P.), no âmbito do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas. »

O artigo 2.º do NRFGS, foi posteriormente alterado pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2019, com o aditamento de um n.º 9, que estabelece: «O prazo previsto no número anterior suspende-se com a propositura de ação de insolvência, a apresentação do requerimento no processo especial de revitalização e com a apresentação do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas, até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º ou da data da decisão nas restantes situações.» No entanto, esta disposição não se aplica ao caso, por ser posterior a ele.

7. No presente processo, a decisão recorrida procedeu à desaplicação de duas normas. Por um lado, a norma que determina que «o Fundo de Garantia Salarial cobre os pagamentos que deveriam ter sido feitos ao trabalhador pela entidade empregadora nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência» – que foi o que ocorreu no presente caso –, decorrente do artigo 2.º, n.º 4, NRFGS (cfr. p. 14 da decisão a quo).

Por outro lado, a norma que estabelece que «O Fundo só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho», sendo que não é dito «expressamente que se trata de um prazo prescricional», decorrente do artigo 2.º, n.º 8, NRFGS (cfr. p. 14 da decisão a quo).

O tribunal a quo considerou estas normas inconstitucionais porque «a determinação de um prazo de caducidade de um direito sem se prever quaisquer causas de suspensão ou interrupção e prevendo-se (…) a necessidade de requisitos para o exercício do direito que não estão na mão do seu titular fazer preencher, de tal maneira que não está garantido que o seu titular possa ter a oportunidade legal de exercer o direito dentro do prazo (…) não é suportável constitucionalmente, designadamente não passa pelo crivo da consagração do estado de direito (artigo 2.º da Constituição), na medida em que torna aleatórios e arbitrariamente subversíveis os pressupostos de exercício de um direito social reconhecido a todos os trabalhadores» (cfr. p. 25 da decisão a quo). Considera, também, que «a sobredita aleatoriedade resulta, perante os mesmos pressupostos substantivos de facto e de direito, sem causa de discriminação alguma que não o acaso, se denegar, potencialmente a uns trabalhadores e conferir a outros uma prestação de estado social, ou seja resulta numa ofensa do princípio e do direito fundamental à igualdade de tratamento consagrado no artigo 13.º da Constituição» (cfr. p. 25 da decisão a quo). A decisão a quo também refere que se encontra violado o «direito à (justa) remuneração do trabalho, o que é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º)» (cfr. p. 26 da decisão a quo).

B) Do mérito

8. A decisão recorrida procedeu à desaplicação de duas normas distintas, uma dizendo respeito ao...

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