Acórdão nº 231/20 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Abril de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução22 de Abril de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 231/2020

Ata

Aos 22 dias do mês de abril de 2020, os quatro juízes integrantes do pleno da 1.ª secção, presidida pelo Conselheiro Presidente, Manuel da Costa Andrade, e composta pelos Conselheiros Vice-Presidente, João Pedro Caupers, José António Teles Pereira e Maria de Fátima Mata-Mouros (relatora), reuniram-se por via telemática para discussão do projeto de acórdão relativo ao Processo n.º 527/2019, previamente distribuído pela relatora, decidindo o recurso apresentado nos presentes autos pelo Ministério Público, na qualidade de recorrente [artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional – Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redação constante da Lei n.º 1/2018, de 19 de abril].

Tendo os intervenientes chegado a acordo quanto ao teor da decisão, foi o acórdão aprovado por unanimidade, com dispensa de assinatura, nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, sendo integrado na presente ata, assinada pelo Conselheiro Presidente.

A aprovação do acórdão foi feita ao abrigo do artigo 7.º, n.º 5, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.

ACÓRDÃO N.º 231/2020

Processo n.º 527/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. Nos presentes autos em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., S.A., o primeiro interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [LTC]), identificando como seu objeto a «norma constante dos artigos 2.º, n.º 1, 28.º, n.º 3, alínea j), todos do Regime Sancionatório do Setor Energético, dos artigos 23.º, n.º 3 e 25.º, n.º 1, ambos do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor do Gás Natural, aprovado pelo Regulamento n.º 139-A/2013 da ERSE, publicado na 2.ª série do Diário da República, de 16 de abril de 2013, do artigo 31.º, n.º 1, do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor da Eletricidade, aprovado pelo Regulamento n.º 455/2013 da ERSE, publicado na 2.ª série do Diário da República, de 29 de setembro de 2013, ambos na redação vigente à data dos factos, ao preverem como contraordenação grave a inexistência de um atendimento telefónico eficaz, por violação dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, previstos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa» (cfr. fls. 1498).

2. O recorrente apresentou alegações em que sustenta que deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões (fls. 1641 ss.):

«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, 72.º, n.º 3, 75.º, n.º 1, 75.º-A, n.º 1, da LTC , “da douta sentença de 8 de abril de 2019 (ref.ª 226991), que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, da norma constante dos artigos 2.º, n.º 1, 28.º, n.º 3, alínea j), todos do Regime Sancionatório do Setor Energético , dos artigos 23.º, n.º 3 e 25.º, n.º 1, ambos do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor do Gás Natural, aprovado pelo Regulamento n.º 139-A/2013 da ERSE, publicado na 2.ª série do Diário da República , de 16 de abril de 2013, do artigo 31.º, n.º 1, do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor da Eletricidade, aprovado pelo Regulamento n.º 455/2013 da ERSE, publicado na 2.ª série do Diário da República, de 29 de setembro de 2013, ambos na redação vigente à data dos factos, ao preverem como contraordenação grave a inexistência de um atendimento telefónico eficaz, por violação dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, previstos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”.

2.ª) O objeto deste recurso por inconstitucionalidade importa em apreciar se as exigências dos deveres de conduta (organização do atendimento telefónico aos clientes), tal como descritas nas expressões normativas conjugadas dos artigos 22.º, n.º 1, 23.º, n.º 3, alínea b), e 25.º, n.º 1,do RQS-SGN, por uma parte, e 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do RQS-SE, por outra parte, podem ser predicados de “suficiente determinabilidade”, do ponto de vista dos seus destinatários típicos, que lhes torne possível ter ciência e assim poderem evitar incorrer nas condutas proibidas, para efeitos da garantia constitucional da segurança jurídica.

3.ª) A sentença recorrida ajuizou que “em concreto, o que se imputa à recorrente é a ausência de um sistema de atendimento telefónico eficaz”, pelo que a frase normativa a examinar, no quadro dos regimes regulamentares do RQS-SE e, depois, do RQS-SGN, é a de “atendimento telefónico eficaz”.

4.ª) O método para apurar dessa “suficiente determinabilidade” procede da interpretação do regime regulamentar dos textos normativos relevantes, em ordem a determinar se a frase “atendimento telefónico eficaz” é, objetiva e razoavelmente, inteligível para os seus destinatários típicos, de modo que a comercializadora tenha ciência do seu conteúdo e esteja assim habilitada a pautar a sua conduta de harmonia com os deveres de conduta que procedem dessas prescrições normativas.

5.ª) Convém ainda referir que as exigências do princípio da lex certa em sede do ilícito de mera ordenação social são menos intensas dos que as que vigoram em sede do ilícito penal, pois o que a Constituição impõe, segundo a leitura estabelecida pelo precedente constitucional, constante e reiterado, são "exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional", que se mostram satisfeitas se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas.

6.ª) Mas não é um regime legal (importa frisar este dictum constitucional, o que releva é o regime legal ou regulamentar, em globo, e não preceitos desgarrados) que infrinja as "exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional", e menos ainda de “indeterminação extrema”, volvendo impossível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, longe disso, o caso que agora nos ocupa.

7.ª) Nem sequer, em rigor, é mesmo caso de indeterminação, como nos propomos demonstrar seguidamente, nomeadamente à luz dos termos comuns do processo interpretativo.

8.ª) Convém agora relembrar que apenas poderemos qualificar a frase normativa em apreço como um “conceito indeterminado” se, depois de percorridos todos os passos canónicos do processo interpretativo, nomeadamente segundo critérios sistemáticos, o resultado hermenêutico assim obtido seja uma proposição normativa “excessivamente indeterminada”.

9.ª) Ora, quanto ao regime regulamentar do “Atendimento telefónico eficaz” no RQS-SE, o texto normativo é claro a estabelecer, em pormenor, a função do sistema de atendimento telefónico, no conteúdo dispositivo dos seus artigos 34.º a 37.º.

10.ª) Nestes preceitos do RQS-SE são, expressa e contextualmente, prescritas as funções (comunicação de leituras, comunicação de avarias e atendimento comercial), critérios financeiros (custo zero para o cliente) e de desempenho e sua avaliação, do sistema de atendimento telefónico, ou seja, para ser eficaz, o sistema de atendimento telefónico implantado por qualquer prestador de serviço, no caso a A., S. A., deverá estar à altura dessas exigências funcionais, quantitativas e qualitativas.

11.ª) Outro tanto se dirá no âmbito do RQS-SGN, os seus artigos 22.º, n.º 1, 23.º, n.º 3, alínea b), e 25.º, n.º 1, devem ser lidos conjugadamente com outros diversos preceitos, nomeadamente os artigos 33.º, especialmente n.º 1, als. b), c), d), 35.º, n.ºs 1 a 5, 36.º, n.ºs 1 a 4, e 37.º.

12.ª) Da leitura combinada destes preceitos, como é natural, igualmente se obterá uma norma jurídica completa e perfeita, que estabelece os deveres dos comercializadores perante os clientes, no âmbito da prestação do serviço de gás natural, de modo “suficientemente determinado”, cumprindo assim esse grupo normativo a sua função pragmática de tornar inteligíveis, para os seus destinatários típicos, os deveres de conduta que dele resultam.

13.ª) No fundo, ao referirmos a leitura conjugada de todas as normas que regulam o serviço de atendimento telefónico, ou seja, o regime regulamentar em causa, estamos a assinalar, como já havíamos deixado claro, que o regulador estabeleceu uma definição de precisão, para efeitos de aplicação do RQS-SE e do RQS-SGN, prevenindo assim qualquer eventualidade de “vagueza” do termo “eficaz”.

14.ª) Por outras palavras, os artigos 34º a 37.º do RQS-SE e 33.º nomeadamente n.º 1, als. b), c), d), 35.º, n.ºs 1 a 5, 36.º, n.ºs 1 a 4, e 37.º do RQS-SGN, contêm definições de precisão que desfazem qualquer virtual imprecisão, nomeadamente de tipo pragmático, da linguagem regulamentar.

15.ª) Assim, ao julgar materialmente inconstitucionais os artigos 23.º, n.º 3, e 25.º, n.º 1, ambos do RQS-SGN e 31.º, n.º 1, do RQS-SE, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, na modalidade de erro de interpretação do princípio da segurança jurídica, imanente à cláusula do Estado de Direito, enquanto imposição dirigida ao legislador, de prover pela “suficiente determinabilidade” das previsões normativas das duas contraordenações em causa (Constituição, art. 2.º). »

3. Por sua vez, a recorrida alegou, apresentando as seguintes conclusões (fls. 1676 ss.):

«a) A sentença recorrida desaplicou, por inconstitucionalidade material, as normas dos artigos 23.º, n.º 3, e 25.º, n.º 1, ambos do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor do Gás Natural, aprovado pelo Regulamento n.º 139-A/2013, da ERSE (RQS-GN) e do artigo 31.º, n.º 1, do Regulamento da Qualidade de Serviço do Setor...

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