Acórdão nº 279/20 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Maio de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução19 de Maio de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 279/2020

Processo n.º 203/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheira José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A. (o ora Recorrente) foi condenado, no âmbito do processo comum para julgamento por tribunal coletivo n.º 444/15.3GASSB, do Juízo Central Criminal de Almada, por acórdão de 29/03/2019, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova, em cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas pela prática de crimes de crimes de violência doméstica agravada, bem como na proibição de contactos e indemnização às vítimas do crime.

1.1. O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. Consta das alegações de recurso, designadamente, o seguinte:

“[…]

15. Assim, importa arguir a exceção do caso julgado, que por sua vez materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5, da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

[…]

Conclusões:

1. A motivação da decisão de facto do tribunal de 1.ª instância fundamentou-se prática e exclusivamente nas declarações prestadas em julgamento pela assistente B. tendo, na ótica deste coletivo, revelando-se essenciais para a formação da convicção do Tribunal.

2. Analisando a factualidade dada como provado, resulta que o foi com base em imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efetivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa.

3. Por conseguinte, tais imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e do lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado (art. 32.º, n.º 1, da CRP), não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, devendo ser tidas por não escritas, como é entendimento jurisprudencial generalizado.

[…]

21. Relativamente às gravações e vídeo (este não visualizável) juntos a 11.02.2019 pela Assistente ‘a proibição de prova relacionada com o princípio da imediação constitui um vício do modo de convicção do tribunal, cuja repercussão é a nulidade da prova proibida quando ela venha a ser valorada na sentença (artigo 32.º, n.º 8, da CRP)’.

[…]”.

1.1.1. Por acórdão de 17/12/2019, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.

1.1.2. Desta decisão pretendeu o arguido recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pretensão que viu indeferida pelo senhor juiz desembargador relator, por despacho de 28/01/2020, com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP.

1.2. O arguido interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos – nos termos seguintes (transcrição parcial do requerimento de fls. 2222/2241):

“[…]

A., arguido nos autos supra identificados, tendo sido notificado do despacho que rejeitou o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça e dele não se conformando, vem pelo presente e nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, por entender inconstitucional a aplicação do artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal ao aqui Recorrente, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa) interpor recurso para o Tribunal Constitucional.

Assim, nos termos e para os efeitos o disposto no art. 75.º-A, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, junta o seu recurso apresentado junto do Tribunal da Relação de Lisboa, bem como o Acórdão por este proferido.

E porque para tanto tem legitimidade e está em tempo, requer a V.ª Ex.ª se digne considerar desde já como interposto o recurso.

[***]

Ex.mos Senhores Doutores

Juízes do Tribunal Constitucional,

[…]

No recurso para o tribunal Constitucional só está em causa a parte da inconstitucionalidade da norma e a interpretação que dela foi feita pelo tribunal a quo. Não se discute toda a causa.

O objeto do recurso em sentido substantivo (e não meramente processual) é, pois, uma norma à qual se reporta a questão da inconstitucionalidade e não a decisão judicial do tribunal a quo.

Assim,

Não se conformando com a respetiva sentença, a 29 de abril de 2019, o aqui Recorrente dela interpôs Recurso de Apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

No caso em concreto e de acordo com o que supra se esclareceu no âmbito do presente Recurso para o Tribunal Constitucional, nas suas conclusões para o Tribunal da Relação de Lisboa, o Recorrente concluiu que:

‘(…)

16. A 27 de maio de 2011, a Assistente apresentou queixa crime contra o arguido imputando a este a prática do crime de violência doméstica (doc. n.º 1 – auto de Ocorrência, que ora se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

17. Queixa essa que lhe foi atribuído o proc. n.º 430/11.2PAMTJ que correu os seus trâmites processuais nos Serviços do Ministério Público do Montijo.

18. Posteriormente, a assistente veio a desistir desses autos, conforme despacho de arquivamento que ora se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

19. Ora, importa esclarecer que nos presentes autos o arguido VOLTOU a ser julgado por factos que foram arquivados, em concreto: ‘(…) Por a hora acima mencionada neste departamento Policial a denunciante a comunicar que nos 25 e 26 do corrente ( maio de 2011) o seu esposo agrediu-a fisicamente e psicologicamente apertando-lhe o pescoço, em virtude do suspeito ter recebido uma carta do advogado da vitima para tratarem do divórcio, tendo o mesmo afirmado que se ia matar na sua presença bem como na presença da filha afirmando, ainda, que: se receber alguma coisa do tribunal mato-me a tua frente e frente da C. e do D.. ---De referir que a B., vai para casa de sua mãe juntamente com a sua filha C. (…).”

20. Assim, os factos constantes da sentença, em concreto os factos do ponto 22 ao ponto 33, configuram caso julgado, porquanto os mesmos já foram objeto do processo n.º 430/11.2PAMTJ que correu os seus trâmites processuais nos Serviços do Ministério Público do Montijo, tendo a ali queixosa, desistido da referida queixa e por conseguinte os autos foram arquivados.

(…)’

A 19 de dezembro de 2019, veio o Tribunal da Relação de Lisboa, a negar o provimento ao recurso apresentado pelo aqui Recorrente.

Mais uma vez, não se conformando, a 20 de janeiro de 2020, o Recorrente interpôs Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 432.º do CPP, conjugados com o disposto nos artigos 434.º do CPP, sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.os 2 e 3, do citado diploma legal.

A 30 de janeiro de 2020, veio o Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho, a decidir: [segue-se reprodução do despacho de não admissão do recurso referido em 1.1.2., supra.]

Debrucemo-nos na parte da norma que se considera violada: art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (caso julgado penal).

[…]

Nesse seguimento, o Tribunal da Relação, veio decidir por acórdão que ‘(…) ainda que se reconheça nos factos acabados de destacar o teor do episódio que é objeto da queixa, como julgamos ser evidente (…). Pelo documento em causa também se percebe, afinal, porque é que a desistência de queixa foi possível: é que pese embora o crime denunciado tivesse inicialmente sido catalogado como de violência doméstica, o respetivo despacho de arquivamento subsumiu-o como de ofensa a integridade física simples (art. 153.º do CP) (…)’.

Paralelamente, deu o tribunal a quo, como provado:

[…]

Ora, foi exatamente a desistência de queixa, preconizada pela Assistente B., no âmbito dos autos n.º 430/11.2PAMTJ que correu os seus trâmites junto do DIAP do tribunal do Montijo, relativa aos factos que o Arguido “voltou a ser julgado” nos presentes autos! Aliás, confirmado pelo próprio Tribunal da Relação como se apura da leitura do mesmo.

Ainda que o CPP não regule o instituto do caso julgado, resulta desde logo do princípio ne bis in idem consagrado no art. 29.º da CRP.

O caso julgado pressupõe a identidade do objeto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem “o mesmo crime”, na aceção jurídico-penal.

No crime continuado o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hão-se considerar-se englobados no “recorte de vida” anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido.

Postula na verdade o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.

Trata-se de imperativo constitucional ao qual é devida imediata obediência por força do disposto no art. 18°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Referindo-se a Constituição da República apenas a “julgamento”, poderia considerar-se que a questão do caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nessa fase e não também relativamente às proferidas em fases processuais que não sejam a final. Porém impõem-se a sua aplicação não só à sentença, como a outras decisões finais equiparadas, designadamente o despacho de não pronúncia e desistência de queixa, como é o entendimento do próprio Supremo Tribunal de Justiça.

O princípio ne bis in idem consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República, “embora pensado e estruturado em razão da segurança e paz jurídica”, “assume também uma garantia fundamental do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT