Acórdão nº 396/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 396/2020

Processo n.º 763/2019

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A., e recorrido IGCP- Instituto de Gestão do Crédito Público, I.P., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal de 28 de maio de 2019.

2. O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma ação declarativa sob a forma de processo comum, intentada com vista à condenação do ora recorrido no pagamento de montante equivalente ao valor de certificados de aforro da «série B», acrescido de juros mora, de que era titular a mãe da recorrente, falecida em abril de 2005. Sendo a recorrente a sua única e universal herdeira, em fevereiro de 2006 comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira o óbito, bem como a relação de bens deixados, de que constavam os referidos certificados de aforro.

Em setembro de 2016, nos termos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho (alterado pelos Decretos-Leis n.º 122/2002, de 4 de maio, e n.º 47/2008, de 13 de março), o recorrido considerou prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos certificados de aforro, por ter decorrido o prazo de 10 anos desde o óbito da sua titular, sem que tivesse sido requerido o respetivo reembolso ou transmissão através da emissão de novos certificados.

Em primeira instância foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a exceção perentória de prescrição invocada pelo réu, ora recorrido, tendo este sido absolvido do pedido. Interposto recurso desta decisão pela autora, ora recorrente, o Tribunal a quo decidiu alterar a matéria de facto, aditando como facto provado que, «m) O R. informou a A. dos procedimentos a efetuar para a transmissão ou reembolso dos certificados de aforro (…) e alertou-a para o prazo de prescrição do seu direito (…)», julgando improcedente a apelação.

É desse acórdão que vem interposto o presente recurso.

Uma vez admitido, foram as partes notificadas para produzir alegações com vista à apreciação da inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 e 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de junho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio e o Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, por eventual violação dos artigos 62.º e 165.º, n.º 1, alíneas a) e e), da Constituição.

3. A recorrente produziu alegações, apresentando, no que releva para a apreciação da questão de constitucionalidade, as seguintes conclusões:

«I

A ora Recorrente invocou devidamente a questão da inconstitucionalidade (na sua petição inicial, em 9 de Fevereiro de 2018, no requerimento de resposta à contestação, em 25 de Maio de 2018 e no recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, em 23 de Outubro de 2018).

II

O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 28 de maio de 2019, no processo n° 3270/18.4T8LSB.L1 julgou não verificadas as inconstitucionalidades invocadas nos autos decidindo, a páginas 22 a 27 (ponto 2.1.) do douto aresto recorrido que

- “a exigência de uma manifestação concreta junto do IGCP para concretizar a transmissão dos certificados de aforro não limita de forma inadmissível e injustificada a transmissão da propriedade privada consagrada no artigo 62.º da CRP, ao contrário do pretendido pela apelante, tal como não o limitará o cumprimento de outras exigências legais (participação às finanças para efeitos de IS, celebração de escritura de habilitação, eventual inscrição do novo titular na CRP,...), não obstante a aceitação da herança nos termos gerais (que, recorde-se, pode ser feita de forma tácita - art. 2056° do CC). Em conclusão, o preceito em análise não viola o art. 62º da CRP, já que, através da disciplina por si fixada, não se restringe a transmissão por morte do direito de propriedade privada, não tendo, pois, sido inconstitucional a interpretação que do mesmo foi feita pelo tribunal recorrido, improcedendo, nesta parte, a apelação” e;

- “não se nos afigura que esteja em causa qualquer situação de expropriação sem indemnização, mas antes verdadeira prescrição derivada do não exercício do direito” ... concluindonão padecer o Decreto-lei n.º 172-B/86, de 30.06, de inconstitucionalidade orgânica, improcedendo, também, a apelação nesta parte”,

III

assim aplicando norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, razão pela qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 70, nº 1, al. b) da lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

IV

a Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade material e orgânica das normas contidas no artigo 7.º do Decreto-Lei n.° 172-B/86, de 30 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.° 122/2002, de 4 de Maio e Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março que fixa o regime jurídico dos certificados de aforro.

(...)

XII

Ora, no Acórdão em análise, o disposto no art.º 7º do Decreto-Lei n.° 172- B/86 foi interpretado de forma restritiva e na forma que o foi, atenta gravemente contra o disposto no art.° 62º da Constituição porquanto, tendo a Recorrente procedido à habilitação de herdeiros e participação do óbito às finanças com relacionação dos bens (incluindo os ditos certificados de aforro), aceitou a herança, pelo que o domínio e posse de todos os bens da herança foram adquiridos pela recorrente (art.º 2050º do Cód. Civil).

XIII

Essa aceitação é a única formalidade de que a lei civil faz depender a entrada dos bens no domínio e posse dos herdeiros.

XIV

Assim, exigir o cumprimento de uma outra qualquer formalidade, para mais associando-a à perda do direito, significa preterição de todo o regime jurídico civil instituído pela transmissão de bens por morte e, redunda em inquestionável violação do direito sucessório e do direito à transmissão por morte consagrado no artigo 62º.

XV

De facto, prevê claramente o art.º 62º da Constituição que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte”.

XVI

Assim, a liberdade de transmissão de bens mortis causa é uma das componentes constitucionalmente consagrada no âmbito do direito de propriedade.

XVII

E, na verdade, se for exigido que, por morte do titular de certificado de aforro, os herdeiros, no prazo de 10 anos, tenham de, por ato autónomo, expresso e específico para esses concretos bens, requerer a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ou o respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado, sob pena de prescrição, faz incorrer em violação do artigo 62º da Constituição, porque se instituiu um novo e acrescido limite condicionante à transmissão por morte, apenas e especificamente quando se trate de certificados de aforro, já que, não cumprindo este acrescido limite, ainda que aceite a herança nos termos exigidos pela lei civil como foi o caso destes autos, prescreve o direito do herdeiro.

XVIII

Ora, como já se referiu, os certificados de aforro são direitos patrimoniais e, como tal, se não existisse aquele normativo legal, seriam transmissíveis nos termos consagrados no Código Civil. E, como tal, feita a aceitação pela Recorrente, como de facto foi feita, nada mais haveria a fazer (como não há).

XIX

Não se evidencia qualquer especificidade dos certificados de aforro, relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere ao aspeto do regime agora em questão, isto é, à transmissão de tais bens por morte do respetivo titular.

XX

E, como tal, não se divisa nenhuma razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime o diferente tratamento relativamente às formalidades a respeitar para a transmissão desses bens que exceda o direito de aceitar a herança (no caso exercido).

(...)

XXII

Ou seja, aceite que seja a herança (e no caso foi inequivocamente aceite conforme supra se refere) a consagração de especial exigência a ser cumprida em sobreposição à consagrada no Código Civil limita inadmissível e injustificadamente a transmissão da propriedade privada consagrada no artigo 62° da Constituição.

(...)

XXV

ADEMAIS e, por outro lado, o artigo 7º. do Decreto-Lei n° 172-B/86 verdadeiramente consagra não uma prescrição, mas uma reversão dum direito a favor do Estado, ou seja, uma expropriação sem indemnização.

XXVI

Na realidade a prescrição, conforme supra já se referiu, é a extinção dum direito pelo decurso do tempo face à inércia do seu titular (o que não é sequer o caso).

XXVII

Mas a norma em análise, o dito art.º 7º, não prevê a extinção do direito mas antes a prescrição a favor do Estado dos certificados de aforro, não se entendendo sequer qual o fundamento ético jurídico que possa apontar semelhante solução de que se não conhece paralelo.

(...)

XXX

Assim esta designada “prescrição” é, no rigor jurídico, uma verdadeira expropriação sem declaração de utilidade pública e sem indemnização, o que viola o artigo 62°, n° 2 da Constituição.

AINDA:

XXXI

De qualquer maneira, e quanto à invocada inconstitucionalidade orgânica, o direito de propriedade e sua transmissão é um direito garantido “nos termos da Constituição”, sendo ainda expresso que a expropriação só pode ser efetuada “com base na lei”.

XXXII

O princípio da legalidade vigente neste domínio de limitação à propriedade é a aplicação geral de que as...

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