Acórdão nº 393/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 393/2020

Processo n.º 1061/2019

3.ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que são recorrentes o Ministério Público e A., Lda., e recorrida B., foram interpostos dois recursos, ambos ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante designada pela sigla «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 23 de setembro de 2019, que julgou procedente o recurso de apelação interposto pela ora recorrida.

2. Na qualidade de arrendatária de prédio destinado a fins habitacionais, a aqui recorrida instaurou uma ação declarativa contra a recorrente A., Lda., peticionando a condenação desta no reconhecimento de que o contrato de arrendamento relativo ao referido prédio, celebrado com o anterior proprietário do imóvel, não transitara para o NRAU, razão pela qual não poderia ser livremente denunciado pelo senhorio, carecendo, assim, de fundamento legal a oposição deste à sua renovação.

Por sentença proferida em primeira instância, a ação foi julgada improcedente.

Inconformada, a ora recorrida apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão datado de 23 de setembro de 2019, julgou o recurso procedente, condenando a aqui recorrente A., Lda. a reconhecer que o contrato de arrendamento não transitara para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente, «NRAU»), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e negando-lhe o direito de se opor à respetiva renovação.

Para concluir pela procedência do recurso, o Tribunal da Relação recusou a aplicação: (i) por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da Constituição, da «alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano)», nos casos em que o arrendatário se tenha mantido no local arrendado, nessa qualidade, «por um período superior a trinta anos, integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei n.º 31/2012»; e (ii) por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, «segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda».

3. No segmento que aqui revela, consta do acórdão recorrido a seguinte fundamentação:

«IV. Se a aplicação/interpretação dos artigos 26, n.º 4, al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º ou, ainda, se a aplicação/interpretação dos artigos 26º, n.º 1, 30º, n.º 1 31º, n.º 6, todos do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012 de 14.08, confronta os princípios constitucionais da segurança jurídica e proteção da confiança que emergem do conceito de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP.

Dirimidas as questões antes expostas, resulta dos termos do recurso que, a título principal e em primeiro lugar, invoca a Recorrente que a aplicação e interpretação dos artigos 26º, n.º 4 al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º e 26º, n.º 1, 30º e 31º, nº 6, todos do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27.02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14.08), ao eliminarem a proteção da Autora/arrendatária decorrente do seu direito de oposição à denúncia do contrato de arrendamento por permanecer ininterruptamente no locado há mais de 60 anos e ter mais de 65 anos, é inconstitucional por não respeitar os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, violando a Constituição da República, especialmente o seu artigo 2º (Estado de Direito Democrático).

[...]

Cumpre decidir, conhecendo, previamente, da possibilidade de conhecimento nesta instância da questão da constitucionalidade suscitada pela Recorrente.

[...]

Ao nível da aplicação no tempo do NRAU rege o preceituado no artigo 59º, n.º 1, segundo o qual «O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas leis transitórias.»

Destarte, subsistindo o contrato de arrendamento em causa à data de entrada em vigor do NRAU, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, daí decorre que está o mesmo contrato sujeito à regulamentação prevista no Código Civil e no dito NRAU e, em particular, às suas normas transitórias, ou seja, às normas dos artigos 26º a 58º do NRAU, nesta última redação.

Neste enquadramento, o contrato de arrendamento para habitação em causa foi celebrado há cerca de 60 anos, o que significa que foi celebrado antes da entrada em vigor do DL n.º 321-B/90 de 15.10. (RAU), sendo-lhe aplicável o preceituado no artigo 27º e 28º, do NRAU, este último com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012.

Este último normativo dispõe no seu n.º 1 o seguinte: «Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30º a 37º e 50º a 54º.»

[...]

No caso em apreço, a senhoria, aproveitando da faculdade introduzida pelo artigo 30º do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, ex vi do artigo 28º, n.º 1, notificou a arrendatária, por carta registada com a/r, da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, indicando o valor da renda (€ 100,00), o tipo de contrato (prazo certo), a sua duração (5 anos, renovável por períodos de 3 anos), o valor do locado, avaliado nos termos do CIMI, constante da caderneta predial (€ 17.670,00), juntando, ainda, cópia desta caderneta – cfr. carta de fls. 36/37 e artigo 30º, n.º 1 als. a), b) e c) do NRAU, na redação já referida.

[...]

Neste contexto, para além de outras hipóteses – que não relevam ao caso -, se o arrendatário responder à carta em apreço do senhorio e nela alegar e demonstrar que tem 65 anos ou mais, ou, em alternativa, independentemente da sua idade, que sofre de uma incapacidade superior a 60%, o contrato só fica sujeito ao NRAU por acordo das partes (artigo 36º, n.º 1, do NRAU), podendo apenas verificar-se uma atualização do valor da renda nos termos previstos nos n.ºs 2 a 10 do artigo 36º, do mesmo diploma.

Trata-se, pois, de procurar proteger os arrendatários em situação de maior fragilidade, em função da sua idade e das suas limitações físicas geradoras de significativas limitações ao nível da angariação de rendimentos que lhe possam permitir aceder ao mercado de arrendamento.

Como assim, respondendo o arrendatário nos termos antes expostos e comprovando aquelas circunstâncias, nomeadamente que tem 65 anos (ou mais), o contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU (de duração indeterminada e vinculístico) mantém-se em vigor “sem alteração do regime [quanto à sua duração] que lhe é aplicável; portanto, mantém o cariz vinculístico, não podendo o senhorio denunciá-lo à luz do art. 33º, n.º 5, al. a), do NRAU”, nem, ainda, opor-se à sua renovação, pois que a oposição à renovação só é aplicável aos contratos de arrendamento com prazo certo – cfr. artigos 1096º, n.º 1 e 1097, n.º 1, ambos do Cód. Civil, na redação introduzida pela mesma Lei n.º 31/2012.

Na verdade, como é consabido, a denúncia corresponde uma forma de extinção dos contratos de duração indeterminada e que pode ser exercida a todo o tempo, ao passo que a oposição à renovação é apenas aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado (por acordo das partes ou ex lege) um prazo renovável, visando a oposição, precisamente impedir que, no termo do prazo, o contrato se renove automaticamente por igual período.

No entanto, não obstante as suas diferenças, certo é que ambas as figuras - denúncia e oposição à renovação - têm em vista a extinção do contrato, constituindo, por isso, como é pacífico, duas modalidades da extinção do contrato de arrendamento.

Prosseguindo, se, ao invés, o arrendatário – como foi o caso – tiver sido notificado pelo senhorio nos termos do artigo 30º do NRAU e nada disser no prazo de 30 dias a contar da receção da respetiva carta, em conformidade com o disposto no n.º 6 do artigo 31º do NRAU,

«A falta de resposta vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.»

Em suma, na ausência de resposta do arrendatário em face da proposta do senhorio, a lei, a título cominatório, presume iuris et iure (isto é, sem possibilidade de prova em contrário por parte do arrendatário – artigo 350º, n.º 2, do Cód. Civil) que o arrendatário aceita a renda, o tipo de contrato e a duração propostos pelo senhorio, ocorrendo a transição do contrato antigo para o NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo de 30 dias a que alude o n.º 1 do citado artigo 31º e passando o contrato a vigorar nos moldes propostos pelo senhorio.

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