Acórdão nº 405/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 405/2020

Processo n.º 175/2020

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi pela primeira interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada pela sigla LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal da Relação em 16 de Janeiro de 2020 (cf. fls. 810-853), no qual foi julgado parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida, ora recorrente, da decisão de 1ª instância que a condenou como autora de dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.°, n.º 1 e 218.°, n.º 1 do Código Penal (CP), nas penas respetivas de dois anos e seis meses de prisão e como autora de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1, do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão, tendo sido determinada a pena única de quatro anos de prisão. O TRL assim decidiu (cf. Acórdão de 16/1/2020, pág. 44, correspondente a fls. 853 dos autos):

«3 – Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em conceder parcial provimento ao recurso, decidindo:

1.º Julgar extinto o direito de queixa relativamente ao crime de “abuso de confiança”;

2.º Fixar a pena única resultante da reformulação do respectivo cúmulo jurídico em três anos e dois meses de prisão;

3.º Suspender a execução da mesma pena pelo período de cinco anos, condicionada, contudo, nos termos fixados.»

2. Na Decisão Sumária n.º 247/2020 (cf. fls. 877-883), ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos (cf. II – Fundamentação, 4. e ss.):

«II – Fundamentação

4. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do Tribunal a quo, com fundamento no n.º 1 do artigo 76.º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa; a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC); e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (vide, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 618/98 e 710/04 – também disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso.

5. Cabendo aos recorrentes delinear o objeto do recurso (norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada), a aferição do preenchimento dos requisitos de que depende a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e, bem assim, a delimitação do objeto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade devem ter por base o invocado no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e reportar-se à decisão recorrida (ou decisões recorridas), tal como identificada(s) pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso e que fixam o respetivo objeto.

Do teor do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade resulta que a decisão de que se recorre é o acórdão do TRL que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida, ora recorrente, mantendo, no entanto, a condenação da arguida pela prática de dois crimes de burla qualificada – embora determinando a suspensão da execução da pena de prisão (Acórdão do TRL de 16/1/2020).

6. Da análise do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (supra transcrito em I, 2.) resulta também que são duas as questões de constitucionalidade que a recorrente pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.

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6.1 A primeira questão – reportada ao artigos 217.° e 218.° do CP – é assim enunciada:

«A Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 217.° e 218.° do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível e lícito ao Tribunal integrar como crime de burla qualificada o incumprimento das cláusulas verbalmente estipuladas entre as partes, acordadas e aceites de livre e espontânea vontade, no âmbito de um contrato de mútuo com vício de forma.»

Isto já que a recorrente considera que:

«a interpretação normativa dos artigos 217.° e 218.° do CP, no sentido de que o incumprimento das cláusulas estipuladas verbalmente entre as partes, acordadas e aceites de livre e espontânea vontade, no âmbito de um contrato mútuo, mesmo que viciado na forma, integra um crime de burla, por se entender que uma das partes atuou com astúcia com o intuito de gerar um engano conducente a atos da outra parte que possam produzir um prejuízo patrimonial, quando a parte lesada [o mutuante] tinha total conhecimento da situação económico-financeira da parte mutuária, acede, acordou e concordou de livre e espontânea vontade ajudá-la, é contrária aos princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da indispensabilidade do Direito penal — ultima et extrema ratio do ius puniendi — e ao princípio da legalidade penal constitucional, estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 18.°, n.° 2, e 29.°, n.° 1 da CRP, e artigo 7.°, n.° 1 da CEDH.»

6.2 A segunda questão – reportada aos artigos 217.°, n.° 1, e 218.°, n.° 1, conjugados com o artigo 30.°, n.° 2, do CP – é assim formulada:

«A Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 217.°, n.° 1, e 218.°, n.° 1, conjugados com o artigo 30.°, n.° 2, todos do CP, na dimensão normativa de que, estando preenchidos os elementos de conexão objetiva e subjetiva, uma vez que a ação ocorre num tempo e espaço uno, o agente e os ofendidos são os mesmos, o bem jurídico é o mesmo, e ação homogénea é dominada pela mesma situação exterior, não integra um crime continuado de burla qualificada.»

Segundo a recorrente,

«a interpretação normativa dos artigos 217, n.° 1, e 218.°, n.° 1, conjugados com o artigo 30.°, n.° 2, todos do CP, de que, estando preenchidos os elementos de conexão objetiva e subjetiva, uma vez que a ação ocorre num tempo e espaço uno, o agente e os ofendidos são os mesmos, o bem jurídico é o mesmo, e ação homogénea é dominada pela mesma situação exterior, não integra o um crime continuado de burla qualificada, gera uma dupla incriminação e dupla punição sobre a mesma unidade fáctico-jurídico-criminal, está ferida de inconstitucionalidade material, por violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.°, n.° 5 da CRP e no artigo 4.° do Protocolo n.° 7 Adicional à CEDH.»

7. Do enunciado de cada uma das questões de constitucionalidade submetidas pela recorrente à apreciação do Tribunal Constitucional decorre, com evidência, não constituírem as mesmas um objeto normativo idóneo para a requerida fiscalização da constitucionalidade. Com efeito, pese embora formalmente as questões sejam formuladas por referência a uma pretensa «interpretação normativa» ou «dimensão normativa» dos artigos 217.º e 218.º do Código Penal (primeira questão) ou dos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 conjugados com o artigo 30.º, n.º 2 do mesmo Código (segunda questão), certo é que as mesmas questões não são dissociáveis das concretas circunstâncias de facto que a recorrente pretende ver decididas de modo diverso, sustentando não consubstanciarem aquelas o tipo penal pela qual foi condenada («crime de burla qualificada») e, bem assim, em qualquer caso, corresponderem à qualificação de «crime continuado».

O mesmo se diga quanto ao modo como as questões que pretende ver sindicadas foram enunciadas pela recorrente nas instâncias, também aí dirigidas ao juízo hermenêutico e subsuntivo formulado na decisão condenatória de primeira instância. Junto do TRL, em sede de alegações do recurso interposto da decisão condenatória de primeira instância, a recorrente apresentou as seguintes conclusões por referência a cada uma das questões de constitucionalidade (cf. Conclusões 29ª a 41ª e 48ª a 53ª):

«DA MATÉRIA DE DIREITO

DA INEXISTÊNCIA DE CRIME DE BURLA: CONTRATO DE MÚTUO E INFRAÇÃO DISCIPLINAR

29.° O caso sub judice enquadra um contrato mútuo gratuito, não reduzido a escrito e não assinado pelo mutuário, presumindo-se oneroso à taxa legal, não sujeito a prazo, cujo incumprimento só se verificaria se preenchidos os pressupostos do artigo 1148. °, n.°s 1 e 2 do CCiv. [Cf. motivação de direito (IV/a)].

30.° Este contrato de mútuo tem, como base negocial, a abertura de uma conta bancária com um plafom, requisição de um livro de cheques, prévia e livremente assinados por B. e entregues à Recorrente.

31.° B. não foi coagido, enganado ou ludibriado, a ajudar ou a assinar fosse o que fosse47, antes autorizou a Recorrente a movimentar a conta bancária por meio dos cheques que lhe entregou e que havia assinado de livre e espontânea vontade.

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