Acórdão nº 594/20 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução10 de Novembro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 594/2020

Processo n.º 49/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. A., SAD, (A., SAD) interpôs recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto da decisão proferida, em 28 de novembro de 2017, pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. Esta, confirmando a decisão singular do Conselho de Disciplina de 31 de outubro de 2017, condenou-a pela prática de infração de comportamento incorreto do público, prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, na multa de € 1.148,00, em virtude de os seus adeptos terem entoado cânticos insultuosos, arremessando objeto para dentro do campo e perturbando a função do árbitro com projeção de um laser. A condenação reporta-se a factos ocorridos durante o desafio com o B., Futebol SAD, realizado no …, em 28 de outubro de 2017, a contar para a 10.ª jornada da Liga ….

Antes de ser notificada da decisão punitiva, a recorrente não teve oportunidade de conhecer as imputações disciplinares que lhe eram dirigidas, nem sobre as mesmas apresentar a sua versão ou posição.

Por acórdão de 4 de fevereiro de 2019, o Tribunal Arbitral do Desporto, julgando improcedente o recurso, manteve a decisão recorrida.

Inconformado, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão de 10 de dezembro de 2019, decidiu revogar o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto e declarar a nulidade da deliberação, proferida em 28 de novembro de 2017, pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.

2. É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada por LTC), pretendendo ver apreciada a «conformidade constitucional do disposto no artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga de Portugal, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do respetivo ato punitivo» e, bem assim, da «norma plasmada no artigo 13.º, alínea f), do citado Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga de Portugal na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga».

O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul foi ainda objeto de um outro recurso interposto pela Federação Portuguesa de Futebol, para o Supremo Tribunal Administrativo, cuja admissão foi sustada até os autos serem devolvidos do Tribunal Constitucional.

3. O recorrente formulou as suas alegações, apresentando as seguintes conclusões:

«44. O Ministério Público interpôs, em 16 de dezembro de 2019, a fls. dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da decisão judicial de fls. a , proferida em 10 de Dezembro de 2019, no Processo n.º 49/19.0BCLSB, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, “(…) nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), e artigo 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15/11”.

45. Com a interposição deste recurso, pretende o Ministério Público que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade do “(…) Acórdão proferido por este Tribunal, em sede do já citado recurso jurisdicional, no âmbito do qual se decidiu pela declaração de não conformidade constitucional do disposto no artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga de Portugal, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do respectivo acto punitivo”; e, bem assim, da “norma plasmada no artigo 13.º, alínea f), do citado Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga de Portugal na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga”.

46. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação é invocada são, respetivamente, os “(…) direitos fundamentais de audiência e de defesa do arguido, preceituados nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa”; e os “(…) princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no artigos 32[5], n.ºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.º 4, da mesma Lei Fundamental”.

47. Antes de avançarmos com qualquer outra perspetiva de ponderação do objeto do presente recurso, começaremos por apreciar a dimensão processual do “thema decidendum” delimitado pelo Ministério Público a fls. dos autos (nos termos reproduzidos no artigo 2.º da presente alegação) e incidente sobre a interpretação normativa do preceituado nos artigos 214.º; e 13.º, alínea f), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

48. Com efeito, muito embora a douta decisão impugnada se debruce e pronuncie, abundantemente, sobre a matéria da inconstitucionalidade das normas jurídicas contidas nos artigos 214.º; e 13.º, alínea f), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não podemos ignorar, conforme transcrevemos supra, que, independentemente da relevância processual das desconformidades constitucionais detetadas, “os factos coligidos no probatório da decisão punitiva não são suficientes, nem adequados, a suportar os juízos de ilicitude e de culpa formulados pela Recorrida na decisão punitiva”.

49. Ou seja, reconhece o douto tribunal “a quo” a existência de um outro fundamento decisório, distinto do respeitante às normas constitucionalmente desconformes que, só por si, constitui “ratio decidendi” de uma solução alternativa acolhida pelo tribunal “a quo”, razão pela qual deveremos inferir que não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso.

50. Sem prejuízo do acabado de expor, e admitindo, sem conceder, que este entendimento possa não ser sufragado pelo Tribunal, não deixaremos, ainda que sucintamente, de abordar as questões substantivas de constitucionalidade vislumbradas e decididas pelos doutos decisores “a quo”.

51. No que respeita à primeira das problemáticas abordadas, a saber, a da sustentada inconstitucionalidade da interpretação normativa “do disposto no artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga de Portugal, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do respetivo ato punitivo”, não podemos deixar de, admitindo como dado pré-constituído a interpretação do direito infraconstitucional alcançada pelo douto tribunal “a quo”, considerá-la desconforme com a Constituição da República Portuguesa.

52. Na verdade, ao considerarmos que, conforme decorre da interpretação normativa desaplicada nos presentes autos, se admite que, no âmbito de um processo sancionatório, o arguido possa ser condenado sem que, previamente, lhe seja reconhecido o direito de ser ouvido e de se pronunciar sobre as imputações que lhe são dirigidas, defrontamo-nos, necessariamente, com uma flagrante violação do disposto no n.º 10, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.

53. Ou seja, ainda que se possa discutir se outros direitos que são assegurados pela Constituição aos arguidos em processo criminal são, igualmente, reconhecidos aos arguidos noutros processos sancionatórios, parece-nos indubitável que, ao menos no que concerne aos direitos de audiência e defesa, estes lhes são expressamente assegurados, por força do consagrado no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

54. Consequentemente, por força do exposto, se atentarmos no teor da interpretação normativa do direito infraconstitucional desaplicada pelo tribunal “a quo”, no sentido de que o disposto no artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não admite a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do respetivo ato punitivo, só poderemos concluir que a mesma se revela violadora do princípio constitucional plasmado no n.º 10, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, a saber, o do direito de audiência e defesa em quaisquer processos sancionatórios.

55. Distintamente do que acabamos de sustentar, a norma contida no artigo 13.º, alínea f), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, interpretada no sentido de conter uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, não se nos afigura que viole qualquer princípio ou regra constitucional.

56. Na verdade, a norma contida no mencionado artigo 13.º, alínea f), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que define a força probatória dos relatórios dos árbitros e dos delegados da Liga, não determina, só por si, que dos factos contidos nesses documentos se extraiam, por via de quaisquer presunções inilidíveis, factos desconhecidos cuja veracidade se revele incontestável.

57. Tal suposta incontestabilidade factual, a reconhecer-se, apenas poderá ser imputada à, anteriormente apreciada, violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, cuja inconstitucionalidade radica na interpretação normativa do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol...

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